28 setembro 2005

alegria

Primeiro foi aquela mão suja que me agarrou deixando cinco marcas precisas no meu colarinho. É impressionante quanta desonra pode haver num colarinho amarrotado. Tratava-se de um moleque sujo e maltrapilho. Talvez tenha sido isso o que fez um homem indiscultivelmente fraco como eu (um sujeito de sangue quente e membros trêmulos) capaz de um gesto veemente como aquele. Num só movimento arranquei a mão que me agarrava e, quando esboçou uma tentativa de agarrar-me novamente, empurrei-lhe com toda força. Então ele sacou um canivete. Senti um frio percorrer todo o meu corpo e pensei que agora era correr ou ficar ali e enfrentá-lo. Ele decidiu por mim: a arma em punho, atirou-se em minha direção e teria mesmo me cortado a garganta não tivesse eu, num gesto cuja explicação até hoje me escapa, dominado seu pulso com firmeza e desferido-lhe um golpe certeiro. Aturdido, o sangue a lhe escorrer pelo nariz, recuou alguns passos enquanto eu, tão supreso quanto ele, olhava bestificado minhas mãos, agora firmemente cerradas. O canivete jazia no chão e meu alheamento era tamanho que, tivesse ele se recomposto a tempo, teria me aberto o crânio com uma pedra qualquer.

O fato é que aquela tomada imprevisível de iniciativa da minha parte, aquela súbita expressão de força, vinda justamente de mim que não havia feito nada a vida toda a não ser conquistar esse emprego de merda que me entope de dinheiro, eu que não respondi nada quando ela me disse aos prantos, a voz esganiçada de desespero, "faz alguma coisa pelo amor de Deus, ela vai morrer" e me afundei no sofá com os olhos em todo aquele sangue sem conseguir pensar em outra coisa que não no fato de que, pela primeira vez, achava minha filha bonita, assim, calma e desistida do mundo ("ela já está morta Ângela, agora cala essa boca por favor"). Justamente eu havia feito aquilo, EU havia impedido que aquele moleque de merda me furasse a garganta, e havia lhe dado um belo de um soco, de arrancar sangue, um puta de um soco no meio da cara. Aquilo me subiu de repente pelo corpo, me aquecendo a alma, expulsando o frio covarde dos meus nervos. Era dignidade aquilo explodindo nos meus lábios na forma de um sorriso abundante. Dignidade. E eu me atirei sobre ele com outro golpe que o levou ao chão. Antes que pudesse esboçar a tentativa de se levantar, afundei o pé em suas costelas com uma violência que o fez urrar como um animal. O tempo que levou para se contorcer foi o que eu precisei pra montar sobre ele e lhe aplicar outro golpe, do lado esquerdo, à altura do ouvido, e não consegui deixar de pensar que aquela imagem, meu corpo sobre o dele, era uma caricatura daquela outra que todos os dia me voltava à memória: Ângela sentada sobre mim, nos primeiros meses, e eu lhe penetrando até às vísceras com seus grunhidos a me dignificar os ouvidos. Aquele monte de palavrões de médio porte que ela jamais diria sem que um pau estivesse a lhe arrancar os recalques. No fundo era uma puta.

Então percebi que um grupo se formava em torno de nós e, entre eles, a garota que eu havia apanhado em casa minutos antes me fitava de olhos arregalados, perplexa. Havíamos nos conhecido na internet, primeiro encontro. Meus planos eram levá-la para jantar e depois parar num motel qualquer para lhe comer o rabo e, no final, esguinchar minha porra na sua cara de vadia, a boca aberta e sorridente. O jantar seria japonês: comida leve e "elegante", pra acariciar a sensibilidade burguesa da moça e não pesar no meu estômago, porque trepar de barriga cheia é uma merda. No caminho paramos para comprar cigarros. Ela fumava, eu pagava. Foi quando apareceu o moleque. Agora ela me olhava e certamente via aquela ânsia nos meus olhos, o tremor dos meus punhos cerrados, o sangue do filho-da-puta nos meus dedos. Não treparia mais comigo. Já me julgava um troglodita, o completo oposto do rapaz sensível que se apresentava com o nick de "Pierrot" . (Porque de minha parte sempre houve certa pretensão de refinamento e inteligência que o meu ressentimento de homem pouco viril jamais me deixou efetivar.) Então lhe dei outro soco, e outro, e foram tantos... primeiro de lado, nos ouvidos, na cabeça, alternando os braços, depois bem no meio do cara, repetidas vezes, como uma máquina.

Ainda hoje, quando penso no que sentia enquanto desfigurava o rosto daquele moleque, só consigo encontrar uma palavra: Alegria. Uma alegria tão intensa e inebriante que eu o teria matado não tivessem me arrancado a força de sobre ele. Olhei as pessoas a minha volta, eram num número ligeiramente maior agora e a garota não se achava mais entre eles. Gente engraçada, pensei. Todos divididos entre o desejo que sentem de ver exterminada de uma vez por todas essa raça de mulambentos de cara suja sempre a ameaçar a segurança de suas vidinhas de classe média, e a violência da cena que presenciaram. Gente cheia de ódio, mas completamente incapaz de matar. O que querem afinal? Que essa escória toda seja presa de madrugada e lançada num caminhão de lixo da prefeitura para ser finalmente queimada em alguma área de propriedade do estado? Não seria um uso perfeito para a merda dos impostos que pagamos todos os dias? E ninguém sentiria mais do que o peso amorfo de culpa ao qual já estão acostumadas suas consciências pseudo-cristãs! Nada que não se resolvesse com uma doação pra alguma maratona televisiva destinada a angariar fundos para crianças fodidas em algum lugar do planeta. Essa gente fraca e limpinha é pior do que eu por uma única razão: eles não sabem a merda que são. Adoram se cheirar nos seus casamentos, missas e batizados, nas suas festas e barzinhos, ou na feira de artigos "indianos" onde compram cristais, incensos e tudo o mais que lhes garanta "bons fluídos" e "paz de espírito". Acima de tudo precisam estar sempre comprando alguma coisa. E ao final nem se trata de um pacto coletivo no sentido de suportar o mal cheiro em silêncio: o nariz dessa gente é que é doente mesmo. Simples. A miséria de espírito que rege suas vidas lhes entorpeceu os sentidos e agora olhavam pra mim com aquela cara estupefata. Pois que se fodessem. E que se fodesse também aquela putinha que teve nojo das minhas mãos sujas de sangue. O rabo dela é que perdeu. Pois eu sairia dali, apanharia uma prostitua fina e no outro dia, quando acordasse exausto de tanto foder, me levantaria, tomaria uma longa ducha e um excelente café da manhã. E sairia para o trabalho trinta minutos adiantado, a pé, torcendo para encontrar pelo caminho um daqueles profetas de rua, com aquela segurança característica desse tipo de sujeito e, antes mesmo que ele conseguisse articular uma palavra completa, quando de sua boca houvesse saído apenas "Jesus te a..." ou "o Senhor te diz..." ou ainda "o mundo hoje..." eu o faria sentir o choque violento do meu punho contra sua boca cuspenta. Talvez apenas um golpe, ou o suficiente para lhe afundar os dentes da frente.

esse conto será publicado na próxima edição do zine literário demo cognitio. ou não.

2 Comments:

At 11:20 AM, Blogger kod3r said...

Caramba. Violento esse conto. Tanto no sentido figurado quanto no literal.

E o que é esse zine literário? É material impresso?

 
At 8:31 PM, Blogger mundosdevidro said...

Valeu! Esse conto é a coisa mais agressiva que já escrevi. Bruto mesmo. Quanto ao zine, é impresso sim. 3000 exemplares por edição com periodicidade inprevisível rss. começamos com ele a 6 anos atras, aqui em goiânia, qdo estávamos no terceiro ano do ensimo médio. foram lançadas 18 edições ao longo desse temo e a próxima tá no forno.

 

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