30 setembro 2005

mãos atadas

Em minha casa há um inválido, e seu nome é Carlos.

_ Olha Carlos! Vamos vêr quem ganha! Eu aposto que hoje é a Fátima.

A esposa triste aponta pra tv lembrando o velho jogo com o qual, ainda há pouco tempo, o casal se entretia todas as noites: adivinhar de quem seria a primeira fala no Jornal Nacional.

_Tá vendo? Eu sempre ganho. Viu? Viu? Fala pra mim se você viu...

Olhos espasmódicos num rosto inexpressivo acompanhados de um filete de saliva que nunca cessa de escorrer, não importa quantas vezes você o limpe.

Eu que não o amo (é parente distante de mim) sofro menos que toda a gente ao redor. Esposa, irmão, tio, cunhada. Mas a cena toda, o conjunto de rituais que se criam em torno do enfermo, as fraldas geriátricas, as preces que se acumulam ao longo do dia e aquela dança de suplicantes em torno de um corpo sem a mínima demonstração de consciência diante de todo aquele amor impotente, isso tudo às vezes me causa uma sensação muito singular, uma espécie de tédio no seu sentido mais espiritual. De repente você se vê diante de uma tal imagem de decadência, ali, bem debaixo do seu nariz... e sua vida não muda em nada. Isso é preciso dizer, esa sensação de mal estar, apenas raramente me atinge. Em geral levo minha vida como se nada estivesse acontecendo. E é justo que seja assim.

Na adolescência me lembro de provocar minha mãe falando de excrementos durante o jantar. Nada nunca foi capaz de me tirar o apetite, a não ser o sofrimento. Acaba que como sempre na sala. A cozinha é próxima ao quarto onde ele está. Mas às vezes ainda me chega às narinas o cheiro dos medicamentos. E aos ouvidos as perguntas sempre sem respostas.

Não me entendam mal: não se trata de nenhum apego à uma certa estética nietzscheana que celebra, enebriada, a força e a saúde.

Trata-se de algo mais simples: é que é por demais decadente a visão de alguém que nem mesmo é capaz de se limpar, ou ao menos de expressar o que sente quanto a isso. Talvez nem mesmo de sentir... Essa se tornou uma das minhas formas de medir a vida: quero estar vivo apenas enquanto for capaz de me limpar.