06 setembro 2006

A Santa Ceia

Não era fácil ser o único ali a ter olhos para vê-la. Os outros não sabiam de nada, não mediam os espaços vazios, não sabiam daquela imprecisão toda, do inferno que era aquilo. Era penoso não odiar aquela gente. Dar a todos o perdão que ademais deviam merecer, por toda aquela ignorância. Não podiam mesmo saber. Era um desencontro de corações aquilo. E ela morria sob aqueles olhos cheios de certezas. Ainda tinham a vida domesticada sob as mãos, haviam se ferido pouco. Ou tanto que não podiam fazer outra coisa que não escolher inconscientemente uma mentira qualquer que tornasse a vida possível. Eram inevitavelmente desonestos com suas feridas. De minha parte, nunca consegui manter um coração homogêneo ante a visão daquela gente que nos visitava cheia de juízos, cheia de salvações na ponta da língua. Nunca consegui me livrar da piedade que senti por todos desde a primeira vez que os vi. E nunca pude deixar de sentir asco. É uma gente que sofre, que anda num deserto de décadas como o povo sob a égide de Moisés. E, como aqueles, crêem que o Messias os guarda e provê um sentido último para tanta miséria e mediocridade. Por isso são altivos. A visão de um Deus lhes feriu os olhos com uma fúria redentora, tão precisa, tão meticulosa que nunca mais souberam o que era de fato indignidade. Perderam a vergonha. Porque para toda aquela merda, para todo aquele monumento de fracasso havia uma redenção absoluta. O Deus que eles tentavam esfregar na cara de Ana e de quem mais julgassem necessário, com aquela polidez de dar nojo, esse Deus era o lastro no qual encontravam licença para viver. Todos muito bem educados. Pudesse eu, daria minha vida para que fossem salvos. Que fosse eu o bendito Messias!, mas que não fosse uma verdade assim tão inegociável o fracasso de uma geração apodrecendo mascarada e ferida, sufocada e temente a Deus.

Certa vez estávamos à mesa, aniversário de Ana no segundo ano de casamento. Estavam todos, o Pai, a Mãe e os irmãos mais novos, Lucio e a pequena Clara. Ana estava contente, havia acabado de entrar no jornal, o salário não era mal, os pais estavam orgulhosos. Comemoravam as bençãos de Deus sobre ela. O Pai pediu um minuto, quando todos haviam acabado de se servir e fez um breve silêncio, como se quisesse apreciar a ansiedade que todos deviam demonstrar pelas solenes palavras que estavam por vir. Falou sobre como era importante aquele dia no qual comemorávamos a vigésima terceira primavera da nossa querida Ana. Queria repetir o quanto amava a filha que com tanto esforço e dedicação foi criada. Havia sido ensinada nos bons caminhos, enquanto era jovem, para que deles não se afastasse jamais! Havia recebido o melhor daqueles pais que não sabiam muita coisa – e o disse esboçando um sorriso modesto – mas que entendiam de amar. E isso, filha, isso eu e sua mãe fizemos com todas as nossas forças. E é com coração jubiloso que estamos aqui hoje pra te dizer: Sê feliz, minha filha, sê feliz! E não se esqueça, nunca, que a paz, a força, o verdadeiro vigor e a verdadeira felicidade estão aos pés do Deus altíssimo que te conhece desde o ventre materno, que te modelou com cuidado e amor e que não se esqueceu de ti. Um dia, Ana, vc voltará a ele. Nós cremos nisso, e de ante-mão celebramos. Viva nossa Ana! E todos romperam em palmas, a Mãe tremia os lábios e fitava Ana com uma alegria sofrida, com um par de olhos que parecia temer mais que qualquer coisa a infelicidade daquela menina, que havia crescido daquele modo, que estava casada, com emprego e tudo. No olhar da mãe havia o temor de que nada daquilo fosse o bastante, de que no fundo a pequena Ana não houvesse crescido, de que não houvesse nela força o bastante. A Mãe, tão mais modesta em suas ambições, temia a visão dos cacos de Ana como talvez temesse o inferno. E batia palmas com as mãozinhas pequenas, parando às vezes pra enxugar rapidamente as lágrimas que empatavam a visão. Por fim, diante daquilo tudo, pus-me a chorar.

Não podia suportar mais nem um minuto toda aquela miséria, toda aquela dignidade forjada, aquele esforço que fazia o Pai para ser digno, para ser grande, aquele fracasso, aquela mesquinharia que se insinuava em cada gesto. E aquele amor, que matava aquela gente, que lhes roubaria a vida ante a visão da degenerescência de seu fruto amado, a bela e desviada Ana. A maneira como usavam o termo sem sequer pensar, a forma como diziam sabemos que você não será pra sempre uma desvida, filha; a inconsciência que tinham do poder devastador daquele termo - DESVIADA! E a própria Ana que tomava as mãos da mãe por sobre a mesa, como que numa promessa, como se quisesse fazê-la saber que viveria. O esforço que fazia para respeitar aquele mundo para o qual havia dado as costas sem remorsos, para dissimular a distância irreparável que a separava deles. Foi, portanto, natural que a certa altura as lágrimas me tomassem os olhos. E todos me olharam com surpresa, principalmente Ana. Não esperavam de mim muito apreço pelas palavras do Pai, que eu recebia sempre com educada indiferença. Não podendo deixar transparecer a agonia que me acometia fitei a todos, meio atônito. E quando as palmas já haviam cessado soltei o meu brado de Viva a nossa Ana! E minhas palmas! E todos me acompanharam e o jubilo se fez enorme e a Mãe e o Pai sorriam surpresos.Também sorriu Ana, com olhos absolutamente aflitos. Nunca diria uma palavra sobre aquilo, como que numa demonstração de respeito à minha vergonha. E talvez fosse uma forma de agradecer, porque sabia que não era fácil ser o único ali a ter olhos para vê-la.

9 Comments:

At 12:28 AM, Anonymous Anônimo said...

a mesa tá tecendo seus dias. parece que brados patéticos contornam a lembrança de um fio de futuro... longe...

 
At 9:28 AM, Blogger Polysbela said...

Se eu tivesse alguma convicção da verossimilhança entre a interpretação que fiz do Brice e o sentido que ele pretendeu, diria, "idem", rsrsrs... como não é o caso, tento eu por mim mesma:

Angustiante o evento, o que não é novidade em se tratando das impressões que tenho dos seus escritos;

a argumentação intrínseca soa bem auto-biográfica, e nem é pela narrativa em primeira pessoa;

e agressivo. Muito agressivo. Se fosse p/ medir pela minha vilipendiada “régua estética”, rs., diria que as analogias saltam aos olhos como um dobermann, e (uma vez disseram aqui, não me lembro quem), as personagens têm um tom verde-escuro.

P.S.: A Ângela tá fazendo o quê nessa estória????? rsrs.

 
At 6:54 PM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Eu sou o autor do verde-escuro. Achei o texto lindo, mesmo. Gosto desse meu futuro escritor preferido porque ele consegue capturar aquela feiura que nos angustia diariamente. De opinião pessoal, ser honesto a esse ponto permite que consigamos parar de nos mentir belezas medíocres. Nesse processo, o que contrasta ganha força. Como ele mesmo me repete sempre:"... porque se há algo que valha a pena é encontrar beleza no meio disso tudo."

 
At 11:44 AM, Blogger mundosdevidro said...

Acabo de receber um email da minha querida Poly. O mesmo me causou risos compulsivos, daí achei que valesse a pena postá-lo aqui, uma vez que diz respeito a este conto.

Quem acompanha o blog sabe que tenho uma obsessão (não me peçam explicações, não as saberei dar) por chamar minhas personagens de Angela. São sempre moças belas, de belos seios e a alma em pedaços. A Ana desse conto também se chamava Angela. Mas quando decidi mudar o nome da personagem houve um trecho que me passou desapercebido, onde permaneceu "Angela".

Pois bem, a Poly não gosta da Angela. De nenhuma de minhas Angelas. Mas como é moça muito polida e reservada, optou por me dizer tais coisas em particular. Como seus comentários foram (como sempre) de um sarcasmo cortante achei que valia a pena postá-los aqui. Le varei alguns dias para obter dela o perdão sem o qual não poderei viver. Mas vale a pena, taí:

Demorei p/ reunir coragem e sentenciar o que se segue contra vc, mas as coisas transcenderam o absurdo. Camulfar essa Angela-coitada depois de um pedido comovente de Polyana Christina p/ sumir com ela, alcança a esfera do cruel e imponderável, sendo assim: ESCOLHA, MANOEL GUSTAVO, OU ELA OU EU. Porque a sua vida é pequena demais p/ nós duas, principalmente com vc e suas idéias literárias levianas planejando maldades e "passando a perna" na que vc dizia ser a sua melhor amiga. E agora fiquei espertinha, que seja Ana, Cláudia, Margarida ou Teófila, sou capaz de reconhecer o comportamento lastimoso dessa menina miserável sob qualquer pseudônimo. Ai da sua pessoa se ela aparecer novamente. Estamos entendidos?

 
At 10:44 AM, Blogger Polysbela said...

Paulo André, o parâmetro que se contrapõe à "belezas medíocres" é qual? Há belezas mais nobres, mais verdadeiras, que valham mais a pena ou causem menos dor? Não é tudo construção de sentido condicionada à capacidade/necessidade do sujeito que constrói? Porque, sim, há no texto do Manoel pretensão de honestidade... e seria justo puxar o tapete das pessoas desequilibrando seus hormônios e arranjos mentais tanto simplórios como sofisticados, mas funcionais?


(Manoel, em casa a gente conversa. Se fôssemos casados, eu sugeriria a aquisição de um sofá.)

 
At 7:31 PM, Blogger karina said...

a séculos não entrava aqui,
aí resolvi retomar minha idéia de criar um blog, criei! meio que arrependida mas criei, e tava aqui olhando o seu e pensei: karina, vc não temcriatividade pra um blog nem afazeres pra ele,
mas vai entender pra que criei, sou doida e atôa, fazê o q?
(gostei do seu texto de auto ajuda) ((p.s não acha textos de auto ajuda inúteis?)

 
At 10:44 PM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Ok, Polysbela, vou tentar te responder as perguntas no nível da sua citada régua estética".
1-O grau de subjetividade do conceito de beleza me permite cunhar um termo assim. E SIM, como entendo, há belezas mais universais, que poderiam se opor a tal mediocridade.
2-Sim, concordo com a parte da construção de sentido, mas isso não invalida que grupos (como eu e o Manoel, por exemplo), compartilhem construções. Não é?
3-"Funcionais" por quanto tempo? E sob toda e qualquer condição que se imponha? Veja bem: mesmo que se construa valores subjetivos - e que são nossa única fonte de força - é bom que se visite, se revise, contextualize essas construções. Nesse sentido acho que o texto do Manoel funciona sim. Não para abraçar o "verde escuro" dele, mas para afinar o brilho de nossas belezas? Serve assim?
(que legal que vc comentou o meu comentário, sua reputação a precede de longe)
PA

 
At 2:23 PM, Blogger Polysbela said...

Paulo, “belezas mais universais” são as que resultam de consenso? O caráter universal decorreria de uma concordância coletiva, majoritária, talvez própria de cada época/cultura? É que, admitindo que seja construção, (coletiva ou subjetiva) a questão centra-se na funcionalidade, na satisfação do sujeito que constrói. Ainda que individualizada, se a construção religiosa do pai de Ana a si mesmo lhe parecesse bela, visto que funcional, a mediocridade ficaria adstrita à opinião de Ana e do rapazinho à mesa. Admito que se maior o consenso sobre o belo, mais reforçada a veracidade da beleza posta em questão... porém tem que funcionar (tornar possível a vida). De fato, as vivências confrontam o indivíduo, atribuindo às suas verdades - acompanhadas das devidas justificativas - um prazo de validade, por isso eu disse que a construção de sentido é condicionada à capacidade-necessidade de quem constrói... qdo a ruptura é profunda, se entra em crise, mas quase sempre os arranjos mentais já vêm com dispositivo integrado de reformulação, rs., e a pessoa se vira bem... se fosse p/ refazer a (sua) frase que me instigou, diria que nem sempre é preciso ser tão honesto, porque desconstruir é ato tão corajoso qto construir, e a bravura extenua... mas sim, honestidade àquele ponto, “permite que consigamos reinventar nossas belezas qdo elas deixam de ser funcionais.”

P.S.: "... Medo" da construção do Manoel sobre a minha reputação, rs.

 
At 12:09 AM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Ah, eu poderia ficar pra sempre conjecturando ninharias abstratas aqui. Mas, quer saber? Vc está com a razão - ou, sendo mais coerente - concordo com vc. Isso não anula os motivos que me fizeram gostar do texto. E é engraçado... Eu que vivo espremendo espiritualidade do Manoel... Me rendo, fique com as batatas. rsrsrs

 

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