21 maio 2006

III.


Nada a ver com destreza, isso descobrira. Nada a ver com a habilidade em manusear os pedaços de mundo que lhe caiam nas mãos. O que faltava era gênio, uma forma fabulosa de conectar dois ou três pedaços da vida de um jeito tal que alguém diria: “como diabos essa menina fez isso”? Queria compensar todo o desarranjo com a criação de uma beleza irrevogável, resistente a tudo, e que a tudo infectasse, uma beleza que fosse violência e vingança, o último lastro de dignidade para quem foi feita em pedaços.

Porque isso eu já sei: estou feita aos pedaços e apenas meus olhos permanecem inteiros. Com eles vejo os cacos de todos e encontro minha paz. A paz modesta de quem aquietou um monsto dentro de si. Aquelas canções que minha mãe me ofertava no seu culto de mãe enquanto, olhando-me nos olhos esquecia que o mundo era mundo, aquelas canções que se grudaram dentro de mim como uma profecia indecifrável – profecia de quê Deus meu? –, elas me salvaram quando eu, o fôlego ausente, me pus a cantar como quem se dispede. E eis que se cumpria a profecia, e tudo se revelava certo entre o caos, e aquele monsto lentamente se aninhava dentro de mim, sentindo nas patas o chão da minha alma, adormecendo enfim exausto. Depois de tudo, só restavam os meus olhos, que lentamente se fechavam sob a voz onipotente de minha mãe. Os meus olhos ainda inteiros, novamente sobreviventes, e aquela voz que me abençoava o sono e me garantia, mesmo sem poder, que não havia nada no mundo maior que aquele amor. Ela acabava por me salvar, mesmo eu sabendo que tanto amor era ela a se salvar também.

Mas esse sentimento que me cerca é a culpa por não ter sido fiel à vida até as últimas consequências? Porque quem foi que me incutiu na alma essa culpa por buscar a calma de que preciso? E quem me convenceu de que era ser infiel? Essa vaidade é o monstro que vou embalar com as velhas canções de minha mãe quando, recém-desperta do sono que se avizinha, me achar novamente inquieta e convicta de que é uma questão de gênio: sobreviver a mim mesma e extrair do ventre profundo da vida a seiva e o ouro que tornam possível o humano. Isso serei eu desperta: os olhos abertos e aquelas canções a me correr pelo corpo.

Eu, que me protejo do infinito cultivando esse meu coração laico, ouço vir de algum lugar de mim uma palavra que, surpreendentemente, se mostra insubstituível...


amém





4 Comments:

At 3:43 AM, Anonymous Anônimo said...

Antes de coninuar lendo, "...uma beleza irrevogável, resistente à tudo..." não é correto. Não há a necessidade do uso do da crase neste A ctado.

 
At 3:58 AM, Anonymous Anônimo said...

Muito, muito perigoso! Mesmo! Retire-se daí imediatamente! O teu segredo é ser você, oferta-o apenas a você mesmo.

 
At 2:45 PM, Blogger mundosdevidro said...

Sobre o suposto "perigo", já te disse pq não acho que essa crítica faça sentido. De qualquer forma, agradeço a preocupação rs.

Qto à crase, vc tem razão. Já corrigi.
Grato.

 
At 1:54 AM, Blogger mundosdevidro said...

Mais uma coisa: não se trata apenas de visitar velhos fantasmas mas, principalmente, de dar seguimento ao infindável processo de auto-exorcismo. Assim as coisas vão bem: é preciso acertar as contas devagar, ao longo do caminho, administrando as próprias forças. Não sei fazer de outro jeito. De qualquer modo, à essa altura, o chão parece confiável sob os meus pés. Não há pânico. Apenas a consciência do risco. Mas aí já não há nada que se possa fazer. Fugir indefinidamente do olhar de Angela, da ansiedade com que ela aperta contra o peito aquele vestido sagrado, enfim, evitar sempre e a qualquer custo a visão daquela dor não é o que me levará á um abrigo qualquer. Conquistada a calma, deve-se manter as janelas abertas. Por elas talvez entre o vento arejante de que precisamos, talvez um furacão impiedoso. Não há como saber. Mas de janelas fechadas, isso é certo, não é possível viver.

o abraço de sempre.

 

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