27 maio 2006

IV.

Se me contassem eu não acreditaria, tamanha a obviedade. Porque para além da angústia, da estupidez, da pobreza dessa cena, há, antes de tudo e em cada detalhe, certa obviedade. Cada fôlego é um clichê e é com profunda vergonha que me percebo imerso nesses pensamentos. Aliás, talvez seja esse o único elemento sempre novo, sempre renovado e inédito: a vergonha que dissimulo em mil outras formas. Porque para cada constrangimento que me acomete sem que as pessoas a minha volta possam notar eu tenho uma expressão correspondente, um sorriso, um gesto, um franzir de testa. Tudo absolutamente falso e de uma eficácia a toda prova. E se outrora esse dom me pareceu um desvio de caráter hoje me alegro no fato de que aprendi a me esconder um pouco do mundo, na medida certa. Aprendi o tempo, o tempo certo do meu recolher. Não costuma falhar e quando falha corro em meu próprio socorro, deslizo os dedos sobre meu semblante inacreditavelmente jovem – foi um piscar de olhos o tempo, foi uma dança rápida, e ninguém poderá nos culpar por não termos nos atentado às exortações daquela gente cheia de cicatrizes – deslizo os dedos por meu próprio rosto e me perdôo. E quando o perdão não vem, quando não consigo fabricá-lo em mim, aquieto-me, encolho-me e espero o tempo passar. Assim deitado, vendo o tempo que se vai, tempo furacão, lembro-me dela, Senhora segura em seus ditados, força erigida com a montanha dos anos, sabedoria, sabedoria, mesmo quando equivocada, força e beleza naquelas rugas, estaria sempre certa, mesmo contra todo o mundo, e me dizia pra não me deixar levar assim, pra não deixar o coração em paz quando começasse a bater devagar. Dizia “é preciso anima-lo meu bem, é preciso ensiná-lo a não dormir, porque não se engane meu bem, um coração que dorme não acorda jamais”. E quando é que eu vou entender como ela pôde acreditar que seu coração permaneceu sempre desperto? O que sabia ela sobre o sono? Ela, aquele monumento. No fundo eu sabia, era sobre minha mãe que falava. Aquele coração que adormecera exausto. Porque não há agora desespero nem nada, porque me deito para ver o tempo passar e prometo-me levantar, apenas me deixem reposuar sim?, por Deus, um minuto, porque não há agora nada que me mova sonharei com calma um ritmo adequado para os meus pés, ritmo que não desfaça o coração sonolento, que não desmantele meus mecanismos de proteção, que não me faça esquecer as mentiras que inventei para me proteger da solidão e da vergonha. Assim, sobre mim pesa apenas o pecado de caricaturizar o indizível, essa blasfêmia logocêntrica. Mas não há quem me condene. Estão todos zonzos demais e eu posso sorrir em paz vendo essa dor que se vai como veio: do nada. Tudo de uma obviedade desconcertante.




5 Comments:

At 6:32 AM, Anonymous Anônimo said...

Pronto: violentou o último pedaço de propriedade, de espírito, de único.
Me faz pensar. Em nome de quê? Qual a motivação, por mais obscura e depravada que seja? Chego num ponto no qual não consigo mais separar, ou diferençar um esforço de auto-representação (que, lá bem no fundo, é um medo) e um auto-flagelamento (permitido na embriaguez desse fundo de papel de pão) ascético demais para se levar a sério. Não sei se escolhe o trabalho germânico, interminável e inútil da construção de um homem (a si próprio) ou se encontra redenção na confissão solitária do seu "indizível" (que imagina silente e que em meus ouvidos gritam). Eu, porém, faço uma escolha. Escolho não saber. Escolho continuar lendo. Nisso, saboreio minha condição humana, nesse desaconselhável impulso. Erro, quem sabe. Prefiro mil vezes me jogar no abismo com minhas próprias pernas do que ficar dando voltas ansiosas ao redor dele, olhando e sentindo rancor, aflição e medo, por não saber o que é. Tal honestidade pode me mostrar até burro, um completo idiota. Sou um idiota. Isso me faz muito pleno de coração. Isso me liberta para "...brincar de ser feliz..." e "...pintar o meu nariz..." Isso me permite, mesmo que muito raramente, expeimentar o amor - o que há de mais idiota, insensato, óbvio, irresistível e (ah, que bom!) total e absolutamente indefinível. Sabe o que é, meu grande amigo? Ninguém cabe dentro de si mesmo. Isso, definitivamente, não é o nosso problema.

Poderia continuar, não fosse eu idiota demais para compor.

Um grande abraço.

Beleza e força, sempre? Não. Amor - "...infinito enquanto dure."

 
At 11:24 AM, Blogger mundosdevidro said...

Vc anda com sérios problemas para discernir entre autor e personagem. Trata-se realmente de um exercício difícil, às vezes impossível. Mas dava pra vc ter se saído melhor rs. Acredite: não há aqui um décimo da violência que vc supõe. Está tudo em paz.

o abraço de sempre

 
At 12:13 AM, Anonymous Anônimo said...

"e é com profunda vergonha que me percebo imerso nesses pensamentos."

parei aí. precisava fazer eu começar a pensar na vida às 23:10 numa noite em que estou morrendo de sono? ruM!

 
At 2:35 AM, Blogger mundosdevidro said...

E, Nayara, seria mesmo uma benção se pudéssemos sempre escolher quando fazer isso rs.

 
At 1:47 AM, Blogger mundosdevidro said...

Creio ter sido injusto para com meu leitor mais prolixo rs. Reli seu comentário e devo confessar que me pareceu bem mais denso que da primeira vez. Não, vc não confunde autor com personagem. Comete um erro mais sofisticado e, talvez por isso mesmo, mais escandaloso. Discerne ambos e faz uma aposta. Mas aposta errado. Não há auto-flagelamento sobre esse papel-de-pão. Mas, pensando bem, deve ser mesmo característica dos que se auto-flagelam fora dos braços legitimadores da religião ocultar esse pequeno fetiche, essa pequena peversão na qual o prazer se consuma e já encontra, imediatamente, sua punição. Portanto, não vai adiantar eu negar, certo? "Puro recalque", vc irá supor rs.

Mas um outro aspecto parece pertinente na exata proporção em que este que acabo de mencionar se mostrou um erro crasso: "(...)Um esforço de auto-representação (que, lá bem no fundo, é um medo)". Preciso como o bisturi de um neuro-cirugião que opera cérebros orientado pela sacra convicção de que há mais ali que um mero encadeamento mecânico de células. (fica me devendo essa descrição profética rs)

Realmente o medo há de ser sempre um dos motivos que nos fazem debruçar os dedos sobre os teclados (em outros tempos diziam "empunhar a pena" rs). No caso é medo do abismo. E é aqui que começo a me perguntar se temos a mesma coisa em mente quando usamos o termo. Pq o abismo ao qual me refiro é aquele no qual jaz um silêncio que torna o ar irrespirável. É o abismo da icomunicabilidade, do inefável. Saber de sua existência, inventar mundos às suas bordas pode ser infinitamente lúdico. Mas lá dentro, digo, lá onde não há lembrança do que tenha sido luz, lá não há nada que possa sobreviver.

Um beijo.

 

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