11 outubro 2006

Quando nos casamos ela me disse, com um sorriso estrategicamente posto sobre os lábios para amenizar a gravidade do que dizia, que sabia, desde o início, o risco que estava correndo. Sabia que estava edificando sua casa sobre a areia. E não precisou me lembrar da parábola bíblica na qual sábio é o homem que constrói sua casa sobre a rocha. Definitivamente, eu não era uma rocha. E aquela foi a mais profunda declaração de amor que já recebi. Não importava eu. Importava, sim, a fé que ela tinha. “No meu coração há mais fé e mais esperança do que no coração de Deus”, dizia, e sorria um sorriso leve, como se estivesse a ironizar os trajes de uma mulher que se crê irresistível.

E tinha isso de dizer as coisas uma só vez. Uma calma com as palavras que era uma coisa de constranger. Dizia algo gravíssimo, algo que normalmente ratificamos, explicamos, dizemos novamente de várias outras formas, como quem violenta a linguagem para que nela caiba a gravidade do que se pretende dizer. Ela dizia uma só vez. Aos prantos ou sorrindo, em angústia ou em completa serenidade, não importava: nunca repetia algo que considerasse realmente grave. Tratava-se de algo como um pudor no uso da linguagem, como se já fosse o bastante ter lançado ao mundo aquelas sentenças. Pois que ficassem lá agora, sob os olhos de todos, como criaturas estranhas, malditas, bastardas, mas, por Deus, que não fosse necessário repeti-las. Não conseguia compreender que fosse necessário submeter os ouvidos de alguém a uma tragédia que tendo penetrado na alma através da audição já tenha por si só a característica de se multiplicar, obsessivamente. Uma sentença realmente importante repetida, uma vez que fosse, lhe parecia tão absurda quanto uma vida vivida duas vezes. Por isso nunca ouvi de novo o que ela disse certa vez, quando apagamos as luzes para dormir.

“Você não precisa morrer disso”. Fez um instante de silêncio e seguiu dizendo as coisas com o rigor e a firmeza de quem martela pregos um atrás do outro, em linha reta até sabe-se lá onde . “Porque não é possível que não possa escolher. Com tanta vida, não é possível que no final você tenha mesmo que morrer assim, de forma tão lenta e poética, mas ainda assim morrer, só porque o mundo é enorme e porque a vida é uma sandice. Pelo amor de Deus, não é possível que seja assim. E só porque penso isso é que cheguei até aqui, só porque não creio na necessidade de uma morte tão tola é que me resignei a ver os seus olhos desse jeito. Olhe pra esses seus olhos! São ocos! Quando já tivermos anos atrás de nós e de repente você...

por Deus, eu não me surpreenderia...”

Nunca terminou de dizer e eu, atendendo ao recato, nunca mais toquei no assunto. Queria dizer a ela que as coisas mudariam, que já estavam a mudar! Queria falar a respeito da nova virilidade do meu espírito, do precário e provisório vigor sobre o qual eu estava erguendo uma vida simpática e suficiente. Queria dizer a ela que a minha vida estava mudando e ficando cada vez mais parecida com a modesta cozinha do nosso apartamento.

E foi com certo alívio que notei, com o passar do tempo, que ela me sorria enternecida pelos meus progressos, orgulhosa daquele meu silêncio que decerto supunha ter algo em comum com a segurança que ela sentia nas palavras silenciadas. Sorria como que dizendo o quanto apreciava os meus novos olhos. Podiam melhorar, mas estavam indo tão bem! E além disso ela nunca exigiu de mim que eu tivesse olhos bons – tinha uma mania de contrariar os conselhos bíblicos -, deles queria apenas que fossem vivos.

Cheguei a entender que seus silêncios eram o fruto de um coração traspassado pela vida, vinculado a esse a esse chão, ao pó da terra, por mil fios inquebrantáveis. Nada a ver com alheiamento. Hoje, quando me protejo da vida abdicando de dizê-la até à exaustão, seu sorriso sempre me vem à memória. Naquele silêncio, com o qual ela domava a amplitude do mundo, o verbo se fez carne e foi redimido.

3 Comments:

At 12:48 PM, Blogger `´é`´ said...

“No meu coração há mais fé e mais esperança do que no coração de Deus” Como queria conhecer esse tipo de humanidade. Uma pessoa assim só pode ser santa, ou sei lá. Mas muito muito bonito mesmo meu caro Manuel Liberas, ou seria Manual Liberel, =P
No dia que eu sentir algo assim, por favor tirem uma foto de mim, ou melhor inventem um instantâneo interativo, mas sem os problemas do programa que apresentaram a gente no (queria um adjetivo para coisas que dao frio na barriga) VannillaSky (nem eh assim que se escreve neh, ou eh). E poderiam então, tirar minhas asas da caixa de relicarios e voltar a voar...

um dia, vamos nos sentar num bar e rir disso tudo, mas uma risada mesclada de hipocrisia e sinceridade.

A única certeza é morrer...

mas não quero acreditar nisso.

vou ali tomar um remédio, e não sei quando volto...

grande abraço meu caro amigo
=;-)

 
At 11:31 AM, Blogger Dheyne de Souza said...

o poeta e a samaritana
o mundo e a bíblia
o oco das mãos

 
At 9:42 PM, Anonymous Anônimo said...

Caralho.

 

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