04 outubro 2006

Sobreviver no silêncio

Eu tenho um problema com o silêncio. Não com o silêncio em geral, afinal moro sozinho, não gosto de lugares muito barulhentos e não guardo muita simpatia por gente falastrona - digo aquele tipo de gente que não consegue conferir à sua verborragia algo que a torne mais que um fim em si mesma; que esse "substrato" seja um encadeamento de argumentos inteligentes, uma tonalidade de voz agradável ou um par de olhos verdes, pouco importa. É a um tipo específico de silêncio que me refiro: aquele que é o índice claro de uma distância. Pensei um pouco sobre isso e não me parece que todo silêncio possa ser assim descrito. Há silêncios que, ao contrário, indicam uma proximidade. O silêncio, às vezes, é o único fio capaz de ligar dois pontos aparentemente inassociáveis dentro de nós ou entre nós e o outro - entre nós e o mundo. Há, portanto, silêncios que são repouso e silêncios que são tormenta. Tanto a plenitude quanto a alienação mais aguda podem ser silenciosas, imagino.

A questão se colocou a mim, entre a fumaça do cigarro e os fragmentos poéticos de Walter Benjamin, sob o prisma da escolha. O silêncio que agora me ronda tem cheiro de distância e me levou a lugares mais graves, talvez mais abstratos e problemáticos do que aqueles do qual partiu. E justamente por isso me traz à mente um outro (tenho descoberto que são vários, talvez incontáveis): o silêncio-distância que é imposto seja lá por que força irremediável. Parece-me que uma tal mudez geralmente conduz a um sofrimento exorbitante, no seio do qual, muito provavelmente, há de haver um grito lancinante... e surdo. A constatação aterradora de que seja possível um tal grito pode constituir uma escala que funcione para medir a dor e o sofrimento. No entanto, se pudéssemos ter em mãos tal escala - na forma de uma fita métrica? - talvez não corrêssemos a debruçá-la sobre algum episódio específico, particularmente doloroso. Talvez buscássemos identificar, mais que qualquer outra coisa, os "números" assinalados nos dois extremos da escala. Mas aqui minha metáfora se auto-implode. O que procuraríamos a todo custo não seria tanto o limite superior da escala. Nele, não é difícil supor, não há qualquer algarismo, e sim uma imagem: a da caveira com ossos cruzados. O que buscamos é o número que jaz exatamente abaixo desse algarismo: o nosso limite.

Mas o silêncio do qual agora me ocupo - com tantas palavras - é aquele cuja extinção podemos buscar promover como numa aposta com razoável possibilidade de sucesso. Caso não se consiga rompê-lo paga-se com algum constrangimento, com algum desconcerto e com a ansiedade sobre a possibilidade de que ele se perpetue, assuma outras formas, mais nocivas, cuja não-extinção haveria de culminar no referido grito lancinante. É o silêncio que aflige, por exemplo, os amantes quando suspeitam pairar sobre o amor algo de sombrio sem que se possa confiar plenamente nos juízos - ou na honestidade - que uma e outra parte possam ter do fenômeno que, ademais, pode conter um sem-número de mal-entendidos.

O que me chama a atenção é o possível caráter pedagógico desse silêncio-distância, mais prosaico e corriqueiro. Talvez ele tenha algo a nos dizer sobre aquele outro que nos leva ao grito lancinante, ao limite de nossas forças ou para além dele e de tudo o mais. Porque tanto é intensa a nossa necessidade de conferir forma à nossa existência, de conferir ordem e sentido à experiência, quanto nos é urgente a capacidade de guardar silêncio quando toda palavra nos é vetada pela dor, pelo absurdo e pela solidão. E talvez o termo pedagógico se mostre aqui um excesso. Porque o que daqui se apreende não é tanto uma lição quanto uma descrição: quando a vida, num momento extremo, nos privar de toda e qualquer palavra o que nos restará se não a capacidade de guardar silêncio sem desabar? Não seria isso o que Nietzsche tinha em mente quando forjou o conceito de força plástica? O termo resignação parece pertinente para expressar a matéria desse silêncio, mas não o esgota. Sua fórmula exata, sua essência, assim como a receita para obtê-lo, nos permanece inacessível. Nos resta, portanto, apontar para as pistas que temos com dedos trêmulos nesse procedimento alquímico e quixotesco que é a busca por algo que possa encher de sentido essa palavra que tantas vezes nos parece vazia: força. De minha parte suspeito que seja saudável treinar. Treinar o silêncio para o dia em que ficaremos mudos. E assim, talvez, tenhamos força para aguardar que as palavras retornem pouco a pouco.

Não se pode exigir de ninguém que suporte o silêncio irremediável, que saiba calar, que saiba cultivar, na tormenta, a surdez que compõe um par apaziguado com o silêncio que nos é ifligido. Mas dessa aposta não se pode abdicar: no limite, sobreviver é saber calar.

3 Comments:

At 8:36 PM, Anonymous Anônimo said...

Você ta certo, cara. O Silêncio é um remédio.

 
At 1:59 AM, Anonymous Anônimo said...

Distância é sermpre aplicada entre dois pontos - físicos ou não - e eu fiquei pensando sobre os pontos a que esse silêncio-distância se aplica. Pensei também sobre os "lugares graves e problemáticos"...e a força irremediável que impõe tal silêncio.Completando a cena na minha mente, pensei no grito lacinante e no limite. O exemplo dos amantes forma os contornos da imagem. Faz-se um retrato angustiado e calmo.Resignado mesmo.

 
At 12:54 AM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Talvez fosse bem disso que o amado Prof. Kilroy falou quando terminou o ensaio com "... seremos capazes de calar." Ou talvez fosse de um silêncio só de discurso, porque para mim, um completo silêncio, mesmo de idéias, é agunstiante. E impossível (pelo menos enquanto estivermos respirando).
P.S. literário: Belo repertório! Utilização lexical firme, criatividade coesa. Muito bom.

 

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