03 novembro 2006

a calma das terras devastadas

Não seria eu quem a condenaria a uma vida que não sabia mais como viver. Não é coisa que se explique facilmente, mas o fato é que havia perdido o fio da meada. Não era força de vontade o que lhe faltava. Na verdade, o vigor lhe permanecia intacto, os olhos vivos e brilhantes. Apenas se moviam menos. Permaneciam longos instantes absolutamente estáticos. Alguma coisa ali havia se partido em tantos pedaços que não Deus poderia contar. Sabia o que tinha de fazer e o faria. E sabia que eu não a impediria, por isso nunca falou a respeito. Seguiu sua vida como se naquela engrenagem outrora tão sincronizada não houvesse peça alguma fora do lugar. Mas eu sabia que estava dando um passo depois do outro, e pra onde. É de impressionar que se leve tanto tempo para se meter uma bala no ouvido, coisa que se faz em um segundo. Ela levou anos e no último instante, tenho certeza, seus olhos ainda brilhavam, estáticos.

Na última noite sentou na cama e na forma como a descobriu eu soube que faríamos amor, e que seria a última vez. Estava calma e desprovida do fardo de aliviar-me da culpa que, ela bem sabia, eu carregaria por todos os anos adiante. E não era injusta essa sua calma. Eu não soube salvá-la, e ninguém no mundo saberia. O fato é que sua perdição se tornou a minha, a secura de sua língua nas noites de natal se tornou o deserto da minha boca, as vozes que silenciaram em sua cabeça durante os últimos anos, fazendo com que o último instante fosse envolto no mais absoluto silêncio, violado apenas pelo estalido seco de um tiro aguardado por anos a fio, aquelas vozes eu as rejeitei e na minha cabeça passou a se ouvir, até o dia de hoje e enquanto houver dias, uma única canção. E se me perguntassem eu diria, simplesmente, que se todas as coisas que de algum modo se salvam produzissem um som, a soma desses sons seria exatamente essa música.

Da última noite o que se mantém mais vivo e ardente em mim não é tanto a lembrança do meu sexo a penetrá-la ou tampouco a fúria com que o engolia ou as lágrimas que escorreram dos seus olhos até que o sono chegasse. Era uma despedida aquilo. O que não me deixa, na verdade, é a lembrança de sua cabeça junto ao meio peito após o ritual solene da perdição dos corpos. E uma pergunta, impiedosa e ressonante, que eu não seria capaz de responder nem em mil vidas: por que não dormimos daquele modo, sua cabeça sobre meu peito e eu, olhos cravados no teto, lutando pra não perder nada daquele espetáculo, resistindo ao sono que, no entanto, chegaria balsâmico e irremediável?

Teria sido um belo despertar para uma última manhã.

E pensava nisso quando pela manhã saí para o trabalho deixando-a ainda dormindo, os cabelos banhando a testa em graça. A sensação era a de que, desde sempre, desde o mais remoto instante no qual se formaram os mais singelos e elementares anseios, desde aquele instante inefável onde se produziu, de algum modo, a primeira carência e a primeira alegria, tudo, absolutamente tudo, achava-se na exata disposição presente. A visão de seus belos olhos cerrados - escuros, escuros, olhos escuríssimos - e a certeza de que nunca mais os veria de outro modo pareciam suspender o tempo. E talvez por tê-lo assim, suspenso, sequer notei o intervalo que separou aquele estalido do silêncio lúgubre que agora começa a me envolver - ao fundo, e cada vez mais baixa, a canção que escolhi em detrimento de todas as outras. E é uma calma difícil de entender, essa, porque começa no exato instante em que a dor nos explode por dentro. Em algum lugar já se deve ter dito que os tímpanos estouram para que os ruídos do mundo não tenham tempo de chegar ao coração de forma devastadora. Assim, em sentido oposto, essa é a calma das terras devastadas, de cujo solo estéril não brota mais que uma fumaça branda, que se espalha pelo ar e pela imensidão que cresce em todas direções, vazia. Deve ser assim no mais alto céu e nos corações que cessam de bater, exaustos. No entanto, o que não me sai da cabeça, nem ao menos por um dia, é por que, por que não dormimos daquele modo. E essa dúvida será o último vestígio de vida, gravado em fogo sobre o tecido fino do meu silêncio, quando ele chegar. Mas a isso não se chamará mais dor. A isso não se chamará.


ao som de Sorglega, do Sigur Rós, claro.

8 Comments:

At 4:29 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu não diria nada diferente disso, só não poderia dize-lo assim. Porque eu só sei as imagens e só sei as dores , nunca as palavreei...mas seria assim.. desse jeito tão bonito q eu diria. E diria pelo olhar de um outro inexistente, pq o meu olhar seria aquele em q não há palavras que o caibam. Dizer as coisas assim torna possível dize-las..
Um belo conto... beleza q assim desse jeito só eu poderei ver, diante de tudo q o cerca e q cerca vc.
O abraço de sempre pra vc,

 
At 11:24 PM, Anonymous Anônimo said...

você me deixa tonta, porque é de uma doçura inenarravel nos contos, não casa com seu sarcasmo cotidiano.
muito querido você.
carinho
iza.

 
At 11:51 PM, Anonymous Anônimo said...

não vou falar palavras bonitas, pra elogiar seu texto, vc não precisa disso. não sei se já percebeu mas vc tem um traço, uma espécie de traço que deixa o texto só seu, com sua cara, seus jeito, e pq não seu estilo?

 
At 11:35 AM, Anonymous Anônimo said...

muito bom, manoel! é o primeiro conto seu que leio e não será o último. gostei.
beijos.

 
At 3:17 AM, Anonymous Anônimo said...

assim resignado, sem exaltação e um abismo menos branco. mas digo é uma bela história das nossas tragédias de gentes.

um forte abraço. e adiante...

 
At 1:14 AM, Blogger JoSé GUarÁ said...

dói ler este texto... é doído...

 
At 11:36 AM, Anonymous Anônimo said...

sem duvida esse foi o texto que mais me agradou.
*ao som de mogwai.

 
At 2:58 PM, Anonymous Anônimo said...

quer dizer... após reler alguns de seus texto já não sei se estou tão certa em relação ao comentário feito anteriormente. acho que, por motivos pessoais, eu estava tendenciosa quando o li, por isso me atingiu com mais força.

 

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