07 dezembro 2006

a sagração

Já havia acumulado na carne as cicatrizes que me renderiam a fama de velha sábia e devota, quando vi pela primeira vez a sombra naquele olhar: o cansaço de gerações num par de olhos de menino, diáfanos como as madrugadas frias nas quais se sentava sozinho na varanda. Uma vez deitou em meu colo, tinha já doze anos, e suspirou fundo como se de suas costas arrancassem uma faca outrora cravada com fúria: “Os anos vão voar, Vovó, os anos vão voar, eu sei”. E enquanto se juntava a mim, molhando-me o vestido, eu pensava que era hora de começar meu rosário, de tecer o conjunto de preces que completariam a sacralidade daquela marcha, a busca ritualística pela mão de Deus que, mesmo ela, não poderia manter inteiro o coração envenenado de uma criança como aquela.

Era eu a velha que havia visto tudo e era eu o único lugar em que poderia aguardar quieto o florescer do mal que trazia dentro de si – jacarandá majestoso, cujas raízes profundas lhe drenavam a alma e cuja seiva lhe conferia a turvez do olhar. Os anos voariam, os anos voariam. E em mim não havia vestígios de uma salvação possível, apenas o esboço de uma morte tranquila ou um repouso modesto. O amava demais para tentar salvá-lo, ele sabia.

Queria que tivesse visto as outras faces da fúria, das quais poderia dispor, talvez, para erguer uma vida qualquer, um amor ou uma vingança quaisquer que lhe permitissem escapar daquele destino aparentemente inexorável. Que tivesse conseguido ver a mentira daquele fatalismo – porque talvez fosse uma mentira a necessidade daquele réquiem como a única música possível até o fim dos tempos! Mas não sabíamos a verdade. E não seria eu a pessoa indicada para lhe abrir os olhos. Eu que havia encontrado a posição mais confortável para se morrer em paz, e que aguardava resignada e gigante o fim chegar.

Foi ele infante, mais que ninguém, quem me fez entender a estranha reverência que depositam sobre os velhos aqueles cujos anos são poucos. Pois foi a ele quem dei a esterilidade da minha benção. Apenas porque entendi que era assim que deveria ser, eram essas as cores exatas, esse o arranjo do nosso desespero, a forma como dispusemos nossos medos e nossos sonhos de modo a se redimirem ilusoriamente numa imagem qualquer, porém belíssima. Acima de tudo precisamos de imagens cuja beleza descanse nossos olhos e porque entendi isso o abençoei manhã após manhã e até o último dia. O fazia com singeleza. Dizia “Deus te abençoe, meu filho” e pensava que era lindíssimo dizer aquilo assim. E me sentia bela.

Olhava aquele menino e era como se fitasse o rosto furioso da vida, um recado de Deus, uma profecia encarnada. E era estranho, porque eu o olhava e era o meu menino, e eu acariciava os cabelos colados à testa cheia de suor das noites quentes e os beijava já bem depois do sono lhe aquietar, e deixava o tempo passar, descontava as horas, não pensava na mãe, não pensava na surpresa generalizada que haveria, no susto, no estupor que tomaria a todos, eu só pensava que estava diante de uma coisa sagrada, de um milagre, e entendi que há feridas que salvam e milagres que matam.

Foi com essa solenidade que, no último dia, beijei seus lábios inertes e fiz sobre sua testa o sinal da cruz após cheirar seus cabelos negros. Há mortos em cujo semblante imaginamos notar certos humores; eu sempre achei terrível essa idéia. Em seu rosto não se notava nada. Isso me aliviava.

Quando adoeceu eu me postava ao pé do leito, olhava e olhava, as mãos sempre à sua disposição. Às vezes ele as tomava, estava sempre a engolir em seco. Dizer não dizia nada, nunca mais disse. E eu percebia que todos julgavam ser eu a melhor pessoa para ocupar aquele lugar. Diziam que eu tinha a calma necessária, que eu não o oprimia com minha aflição, como o faria a mãe, que vagava pelos corredores do hospital feito um zumbi, as mãos junto à boca. Os médicos fizeram tudo, pareciam comovidos. Mas morreu numa manhã e nunca souberam dizer do quê. Acordei de um cochilo e não respirava mais. No laudo há uma descrição complicada que nunca fiz questão de entender, mas parte da família vive num embate jurídico com o hospital. De minha parte, pouco importa. A mim basta a lembrança do seu silêncio nos últimos dias, a calma com que morria, a calma, a calma com que se ia, com que se apartava de nós, aquela calma.

No último dia, dizem, meu semblante era sereno e lavado de lágrimas. Chegaria a hora de gemer, de grunhir feito um animal a perda do bendito fruto pueril. Mas ali, no último dia, enquanto todos procuravam o semblante correto, as palavras corretas para a mãe desfalecida na cadeira ao lado do caixão, naquele dia eu era uma sacerdotisa. Era eu o cordeiro em cujo corpo o desespero de todos era expiado. Era eu a calma de que ninguém era capaz. E oferecia a Deus o espetáculo da minha resignação. Havia me despojado das altas exigências que me ardiam na infância e cultivado um coração modesto, envolto no cansaço redentor que me protege da amargura e me confere a brandura do olhar.

A última oferta, posta no altar daquele culto, foi a dança demente da mãe que, vendo o caixão descer à terra, não se pôs a gemer ou prantear. Não. Fez outra coisa. Naquele fim de tarde escuro, sob um céu que, ironicamente, teimava em manter-se aberto, luminoso, a mãe se livrou do mal: pôs-se a dançar, levíssima. Já era uma senhora, mas dançava de modo leve e delicado, como se não tivesse feito na vida outra coisa qualquer. E dançou até que, amparada, quedou-se numa cadeira posta à beira da cova. O baque surdo das primeiras porções de terra e o sorriso calmo que nunca mais lhe deixou o rosto. A dor havia lhe despedaçado o espírito, e não parava de sorrir. Nunca mais.



ao som de Mogwai, Explosions in the Sky e Deftones.

3 Comments:

At 2:05 PM, Anonymous Anônimo said...

A dor havia lhe despedaçado o espírito. Pensei que o sorriso que nunca mais sairia do rosto dela seria porque ela já havia recomposto seu espírito...

 
At 9:39 PM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Tá que tem um morto e uma louca, como quase sempre. Mas não são lá, loge, os raios de uma aurora qualquer, muito bem-vinda? Conheço alguém que concedeu uma dignidade (mínima) a um filho de Deus. Quem é o responsável pela diplomacia?
Abraço

 
At 2:48 PM, Anonymous Anônimo said...

...entendi que há feridas que salvam e milagres que matam.

que bonito ...

 

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