outro fragmento do mesmo conto
"Decidimos morar juntos, e havia algo de ridículo nisso. Porque éramos lúcidos demais pra não nos constrangermos diante daquela nossa tentativa de ter fé no futuro. Apenas fazíamos a coisa da maneira errada. Quer dizer, que o sujeito queira ter fé no futuro é problema dele. Mas há um outro jeito de esperar o futuro que não seja exatamente confiando nele: pode-se apostar. Há uma porção sempre reservada de incredulidade numa aposta. No entanto o que fazíamos era justamente o contrário: nós que não tínhamos fé nem para acreditar que no domingo faria sol o bastante para secar a roupa de sábado, passamos a colecionar gestos, cacoetes, um monte de quinquilharias sentimentais que nos faziam agir como se acreditássemos no futuro, mesmo quando estávamos a sós. Como se fôssemos o tipo de casal apaixonado que acredita que a porra da conspiração cósmica está a seu favor, e com ela Deus, os patrões e os juros bancários. É vergonhoso dizer, mas uma vez falamos em ter filhos. E isso tudo em poucos meses. Dois ramsters fugindo da solidão. Que imagem anêmica era aquela."
Fico relendo isso e pensando nesse sujeito, o narrador. Que tipo de figura é esse cara? Tão ressentido por não conseguir ser só, e por se tornar tão vulnerável quando movido por essa incapacidade... é o que me parece. Mas não o compreendo bem. Apenas acho que não era assim tão anêmica e patética aquela imagem. Quer dizer, era, mas não gosto de ouvi-lo dizendo assim. É que os gestos de dois ramsters em fuga não são apenas anêmicos e patéticos. São humilhantes também. E desproporcionais, e perigosos, e infantis e muitas vezes cruéis. Mas também infinitamente dignos e belos. Uma bela merda e, ao mesmo tempo, um espetáculo de rara beleza. Há em mim um sorriso terno e desconfortável para isso tudo.
10 Comments:
Para mim, dois ramsters fugindo me lembran o Pink e o Cérebro correndo desesperadamente depois que mais um de seus planos para dominar o mundo deu errado.
rsss cê é mesmo um pândego...
"Dois ramsters fugindo da solidão. Que imagem anêmica era aquela."
realmente, foi o sentimento que tive, uma admiração perante ver uma luta vã não tão vã assim, algo tão humano e natural quanto respirar.
Grande Manoel, tempo que não dou uma olhada nesta bagaça, que vai muito bem, aliás. Gostei de teus últimos textos, e não sabia que vc acabara se decidindo pelo "sim", me deixou comovido, sensibilizado, vc "pegou" a coisa... hehe
Forte abraço
rss pois é luiz, mas não chore. rs
outro abraço
e, beto, essa admiração é justamente a causa do desconforto que sinto em relação ao desdém desse cara pela cena vivida.., e é ambíguo, pq eu concordo com ele, era uma cena um tanto patética mas, como disse, digna tb... talvez seja patética pq toda aposta na felicidade seja meio constrangedora, uma vez que a probabilidade de fracasso é imensa.
obrigado a vcs.
fico com o texto, deixo passar sua análise.
e quem é que nunca decidiu morar junto e ter filhos? enfim, eu já. felizmente, concretizei apenas a primeira parte. que terminou não em mundos, mas cacos de vidro perfuro-cortantes nos quais pisava a toda hora. os cortes, felizmente, já estancaram e quase nem se nota que há pequenas cicatrizes.
"talvez seja patética pq toda aposta na felicidade seja meio constrangedora, uma vez que a probabilidade de fracasso é imensa"
Algo é constrangedor simplesmente pq tem a possibilidade de fracassar?
não luiz, algo é particularmente constrangedor qdo esse algo é uma vida e a possibilidade de fracasso não é apenas real, mas imensa, como disse no texto.
e, maíra, há um trecho de um livro do alessandro baricco em que uma personagem, Shatzy Shell (nada a ver com o cara do posto de gasolina) diz que "ninguém é louco de pensar que é possível chegar em algum lugar de outro modo que não acumulando feridas, principalmente nas costas". que bom que as suas cicatrizaram. espero que haja menos vidro estilhaçado pelo seu caminho de agora em diante, ou que seus pés se tornem mais resistentes. um bju.
Isso da aposta mescla um componente sensorial, instrumentalizado pela vontade consciente de que dê certo mesmo frente à imensa possibilidade de fracasso, com um componente lúcido (racional) que é a análise das probabilidades, por certo havia probabilidades de sucesso, ainda que mínimas – desta pequenez vem o desconforto.
Não havendo probabilidades de sucesso resta a vontade, a prece, o desejo além-realidade, o que implica em inevitável pedantismo. Isso: eu acho pedante o desejo sem lucidez. O sonho sem racionalidade. E o inverso constitui frieza em grau altamente desagradável.
O moço do conto não era tão incrédulo quanto se mostrou, senão não teria apostado, pois havendo nele toda essa certeza de fracasso, a aposta soaria pedante, do tipo: À espera de um milagre. Não soou. A beleza vem justamente daí: “o risco racional é a maior prova de amor”, pois a lucidez, advinda da racionalidade, não impede sensações como o medo ou o desejo.
Sras. e Srs., Polyana Christina, minha psicanalista particular. Não queiram saber o que é estar submetido às reivindicações de racionalidade dessa menina...
Bem Poly, sem dúvida ele não era tão cético com demonstra no momento da narrativo, creio eu. Mas nesse momento ele vislumbra que houve falta de lucidez de sua parte, de que os sonhos eram desproporcionais à realidade, eram ingênuos demais, e se sente ridículo por causa disso, por toda a energia que poderia ser melhor administrada e investida de forma mais razoável... Talvez o que vc chama de pedante seja exatamente o que ele chama de patético.
Mas é como eu disse, tudo isso tb é muito dramático, triste e... digno E por isso tb é belo.
grato pelo ar de sua graça mocinha.
bju
Postar um comentário
<< Home