Ensaio sobre auto-piedade
No fundo da pia branca meus pelos pousam dispersos. Há quem acredite ser possível prever o futuro através das marcas deixadas pela borra de café no fundo de uma xícara vazia. Então talvez seja possível também com fios de barba no fundo de uma pia. Mas eu sou cético demais para essas coisas. Sou cético até pra acreditar no mal que o reflexo dos meus olhos parece anunciar. Aqueles olhos baixos e opacos refletidos no espelho são os meus olhos. Portanto, se prevejo uma ruína inevitável para mim é, ao contrário, de forma puramente racional, medindo à exaustão todas às evidências que coleto no exercício desgatante de auto-análise ao qual me submeto todo o tempo. Não há dúvidas: eu estou enlouquecendo. E não há nada de lúdico nisso. A pergunta é: como é possível que eu tenha pelos na cara e ainda não tenha aprendido? Como é possível que a vida me doa hoje como se fosse a primeira vez? E que o torpor que tantas vezes me acomete, como uma neblina mil vezes odiada, seja uma vergonha tão intensa que nem mesmo a visão dos meus inúmeros companheiros de fracasso pode aplacar? E talvez a cena toda fique ainda mais intragável por causa dessa insistência entorpecida, esse caminhar de zumbi, essa esperança velada de ainda ter algum auto-controle, de acreditar minimamente no futuro.
Desfiro um golpe contra o espelho e conto os cacos que se grudam aos meus dedos, meu punho ainda cerrado, o sangue a escorrer. Há cacos que permanecem lá, ainda presos ao todo. Não é uma manifestação de solidariedade e desespero? Enquanto alguns foram apartados do todo do qual outrora fizeram parte, condenados, restando-lhes apenas a ridícula missão de fazer brotar sangue dos meus dedos, outros permanecem lá, cacos, mas juntos ao todo. Não é isso que deve ansiar a alma de um homem afogado nessa festa de concreto? Encontrar alguma dignidade, alguma viabilidade existencial na sua natureza de caco. Que o ínfimo fragmento tenha o direito de existir sem se encerrar numa infinita insignificância é o que reivindicamos, nós espíritos desprovidos de solidariedade. Nós, espíritos isolados.
E essa vergonha? Sob que chão enterrar esse vexame? Porque é preciso admitir: toda essa lamúria, essa paralisia, essa vida que cessa, está suspensa, presa apenas pelo frágil fio de uma auto-piedade mesquinha e ressentida. Porque nós, os inválidos do espírito, nós odiamos todo aquele que consegue fazer do mundo algo que se pareça com uma vida. Nós odiamos os corpos que se movem desenvoltos, nós odiamos a destreza com que suportam a dor, odiamos a lucidez quando ela os torna dignos e a estupidez quando lhes protege a alma.
Os meus pelos no fundo da pia não podem me dizer nada de pior do que aquilo que calculo a partir do tremor das minhas mãos. E, em último caso, há o reflexo fragmentado de meus olhos no espelho. Esse suposto diagnóstico da minha falência.
1 Comments:
putz!, e como odeio! é me tão alieligena qualquer ser humano que não sofra, tão tão irreal, qualquer um que consiga se prender nas ilusões mesmo. eu quero me entorpecer às vezez, mas é um querer tão fraco, porque se fosse forte eu ia. eu tento escrever e quase vai, fica incompleto, sempre há os espaços em branco. é uma agonia tremenda essa repetiçao, dá medo de chegar aos não sei quantos anos e ainda bater e tropeçar nas mesmas pedras, ou em parecidas, pq nada é igual, nada é. esmurrar o espelho é estar irritado consigo mesmo? eu metaforicamente esmurro. concretamente falando, ainda me amo demais e ainda tenho medo demais. a dor física me trás a lembrança de que sou mortal, nao conscientemente, e nao a dor leve...
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