13 abril 2006

I.

Era impressionante como a vida podia jazer toda ali, num vestido de seda surrada. Cada linha, cada detalhe da costura parecia guardar um pedaço daquela história, e devia haver muito mais que não se enxergava a olho nu, em cada detalhe daquelas pequenas e infinitas rosinhas vermelhas, devia haver coisas que nunca chegou a saber, e respostas, todas elas, por cuja falta trazia o fôlego pesado, o olhar cansado e as mãos que nunca cessavam de tremer.

Não era raro: entrava no apartamento, batia a porta atrás de si e, sem acender as luzes, ia direto para o guarda-roupas preto, antiquísimo, onde achava-se o vestido bege, coberto de minúsculas flores multicoloridas, que a mãe costumava vestir em casa. Abria a gaveta, fitava-o por alguns instantes, e então, trazendo-o junto ao peito, se deitava por horas e horas, desperta, olhos arregalados como um animal em fuga.

Um dia parou à entrada do quarto, tinha onze anos e viu a mãe nua, o rosto entre as mãos. Estava de costas, sentada na cama, trêmula por causa do choro compulsivo, daqueles que não fazem ruído algum, chora-se em silêncio e não faz-se outra coisa que não chorar, nem se respira, o corpo inteiro é apenas choro e nada mais, olhando parece que todos os ossos vão se despedaçar sob o peso daquela tormenta. Diria-se tratar de uma tempestade, e não seria uma tolice, porque, se uma pessoa pode ter dentro de si uma tempestade, ela deve parecer-se com aquilo, aquele corpo violentado por um choro impiedoso, cruel, que pede dos olhos, do corpo e da alma, mais do que podem dar.

Angela ficou quieta. Tinha os olhos cravados naquela cena e assim permaneceu até toda agonia se converter num silêncio sombrio e sua mãe, como quem junta todas as forças de que dispõe, se levantar como uma enferma e a encontrar ali, apoiada na maçaneta, com aqueles olhos que não perguntavam nada, não temiam nada, apenas mediam, avaliavam, como quem se pergunta até onde uma pessoa pode chegar com uma dor que não se vai nunca.

Era impiedosa, Angela. Não que quisesse fazê-la sofrer, mas, naqueles momentos, não lhe poupava do peso obsceno daquele olhar infantil – tão pesado quanto pode ser algo que venha de uma criança –, acompanhava todos os dias aquele inferno e sabia que sua mãe ouvia de seu silêncio uma pergunta perene, uma só, simples e clara: “Até quando? Até quando você vai aguentar, Mãe?” E devia mesmo ser um quê de crueldade aquilo, a pequena Angela com aqueles olhos diáfanos, distantes, no qual não se via vestígio de solidariedade e, para ser exato, nem mesmo de acusação. Era naquela indiferença que sua mãe via o juízo impiedoso de um criança nova demais pra entender do que se tratava, mas já lúcida o bastante para perceber que era um naufrágio aquilo. Sua mãe estava afundando, isso não era difícil perceber. Angela, a infante, assistia aquela derrota de camarote.

Às vezes acontecia de trancar a porta, quando queria sofrer quieta e livre do juízo da filha. Mas tão somente se recompunha e girava a tranca, econtrava Angela ali, de pé, sem uma palavra, ela que não era mais tímida que o normal, que não temia estranhos nem era dada a grandes silêncios mas que, ali, diante da mãe, apenas olhava, e deixava bem claro que sabia: ela, que outrora havia lhe socorrido de toda sorte de perigos imaginários, estava afundando como um barco velho irremediavelmente perdida. E esse não era papel de uma mãe, nisso criam ambas. Não é coisa de mãe, se perder quando a cria, ainda na tenra idade, carece da orientação que não pode criar para si. Que não fosse por mal, mas a alguém essa culpa devia cobrir. Que repousasse então sobre ela, enternamente - afinal era a mãe -, o juízo e o estigma: DESERTORA. Traria junto ao corpo essa marca, como gado queimado em brasa, e para sempre sua memória seria julgada, nisso criam ambas, para sempre sentenciada, a fraca, a egoísta, a desertora infame, mil vezes infame, para sempre derrotada, sob os olhos de todos humilhada e desistida de si. Disso Angela não se esqueceria – e por isso, no fundo, não se perdoaria: assistira a decadência e o fim da mãe, que sucumbiu com um par de olhos que trazia sempre aquele pedido miserável, sempre aquela rastejante súplica por perdão.


2 Comments:

At 9:23 AM, Anonymous Anônimo said...

"não que eu entenda de verdade a dor do autor, mas me solidarizei mesmo assim"

engraçadinho!!!

 
At 12:29 AM, Anonymous Anônimo said...

"Não é coisa de mãe, se perder quando a cria, ainda na tenra idade, carece da orientação que não pode criar para si. "

Isso é um peso enorme... é um peso que pesa, é um peso que q prende, e acaba sendo como o peso de uma ancôra que impede certos "vai-e-vens" mesmo sob o peso de qualquer tormenta.

Coisa de mãe esse post...

 

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