Um conto novo, sem nome, pra variar.
"Vamos não morrer em forma de protesto?"
Clarice Lispector, Água-viva
Ele sempre soube que colocaria de novo as mãos naquela caixa um dia. Embalada em papel pardo, para ocultar as tantas fotos que a decoravam, nela havia uma série de coisas que, juntas, constituíam o inventário de uma tragédia, mil vezes temida e, por fim, vivida gota a gota. Porém belíssima. Não era fácil mexer naquelas coisas.
No início o fazia como forma de avaliar sua saúde, sua tolerância àquela dor que parecia abrir crateras na alma, lançando nelas corpos com faces ainda coradas, com uma aparência tão sã que seria difícil acreditar que estivessem realmente mortos. Todos aqueles sonhos tornados em cadáveres, enterrados na alma, não lançados ao longe, como gostaria alguma consciência ingênua que, pouco experimentada nas nuances do humano, ignora não haver amputação de amores, nem exorcismo para esses fantasmas. O que resta é um cemitério bem no fundo do estômago, e a missão de enterrar em si a própria dor.
Por fim, tornou-se capaz de suportar a visão daquelas fotos e apetrechos sem fim – bilhetes, chaves, desenhos e uma série de outras coisas que não teriam a menor importância não tivessem vindo das mãos que as trouxeram. Decidiu: estava curado. Tinha um belíssimo aparelho digestivo e essa pontada, essa dor indelével, não devia ser indício de má saúde, aliás, devia ser bem compreensível afinal, nada com que se preocupar. Apenas um traço, uma cicatriz e, em certo sentido, um sinal de libertação. Tinha guiado seus pensamentos para longe daquela caixa, como se guia crianças doentes. Com o passar do tempo fabricou a indiferença de que precisava para se proteger, e isso era sobreviver. Temia menos a vida porque essa dor não o havia consumido.
Dessa vez, no entanto, teria de ir além, como ainda não ousara.
As fitas. Pegou-as, todas de uma vez, três ao todo. Pequenas, transparentes, escritas com aquela caligrafia miúda que outrora riscara sua pele sob a luz daquele sorriso, como se assinasse um contrato num teatro cúmplice. Cada uma trazia escrita o dia da gravação e uma breve descrição do evento. Tomou a que dizia “ad infinitum” e pôs no tocador.
Primeiro alguns ruídos, como de movimentos, corpos se movendo ou algo assim e, depois de alguns instantes, sua própria voz, como que rendida: “ok, diga o que quer ouvir de mim, não posso inventar palavras do nada”. Depois de alguns instantes: “É claro que pode, você faz isso o tempo todo.” Era aquela voz. Imutável no tempo, aquela voz sólida, podia-se pegar, era o tempo aquilo. Colocou o tocador em cima da mesa, deu dois passsos para trás e sentou-se. Ouvia aquela voz e cerrava os dentes, resoluto, controlando o fôlego e piscando forte e regularmente.
“Pois então eu te digo, Sr. Inacessível. Quero que diga por que cárgas d’água insiste em viver quando há tantas razões para se morrer”. Ouviu o próprio riso e as palavras que o sucederam: “Não tente parecer mais pessimista do que realmente é, meu bem. Nós vivemos porque somos teimosos, porque vamos contruir uma rebeldia enorme, contra o tempo, contra a natureza. Porque nada, nunca, vai poder mudar o fato de que um dia nos amamos. E isso é o tempo um pouco humilhado. No final, nós sempre vencemos, criança, porque escolhemos a forma de ser derrotados. Seremos esmagados com nossas bandeiras erguidas, com a extravagância do nosso amor erigida como um baluarte sobre nossas sepulturas. Nisso reside nossa dignidade: amamos, e nosso amor foi um protesto. Amamos para insultar o tempo que nos esmagará no final.” E fez-se silêncio. Três minutos, mais ou menos. Então, a voz embargada, a voz, fez-se ouvir: “Viu? (...) Você sempre dá luz à um bocado de palavras, basta que a vida lhe cutuque um pouco (...) Eu poderia levá-las por toda parte (...) e ouvi-las mil vezes. Mas deixarei-as com você. É que, às vezes, elas me fazem levitar. E eu poderia não resistir à tentação de ouvi-las ao ar livre. Então, você me perderia para os céus, o que seria um absurdo, se você pensar bem.” E sorriu, ela, assim. Podia-se ouvi-la sorrindo.
Não ouviu as fitas restantes. Aquilo bastava. Encaixotou-as novamente, guardou a caixa no mesmo lugar de antes e acendeu um cigarro enquanto se afundava na poltrona solitária que ficava no canto da sala, preta, uma espécie de confessionário laico para espíritos desprovidos do amparo de Deus e dos analistas. Pensou que se havia um nome para aquilo podia tanto ser “morte” quanto “vida”. A caixa estava lá, inteira, não destruída num ímpeto febril de auto-exorcismo. Havia uma calma conveniente naquilo tudo. Um homem fazendo as pazes com a morte.
13 Comments:
dói!
Depois eu leio esse post, passei mesmo só pra dizer que eu tava a toa lá na comunidade do FCHF e resolvi dar uma olhada nos tópicos.. PQP! Aquelas coisas não são respostas, são textos! Nem tive paciência para ler não, só pra passar os olhos, mas mesmo assim. que que é aquilo O_O
rss Aquilo lá é um debate teórico Narrira, as respostas acabam sendo longas mesmo. E, acredite, vc vai ter que ler coisa muuuiiito mais complicada que aquilo lá. rs
sobre o conto novo:
um sorriso cúmplice no canto dos lábios. na verdade eu sei, uma sabedoria que identifica e trata suas doenças. a cura. a efetivação do movimento da vida, mesmo com a memória erigida na força de pirâmedes.
rs e vc sabe sempre, melhor que ninguém, tanto qto pode saber alguém que não seja eu, onde começo e onde termino nos meus textos. vc sabe as minhas margens. sim, o texto é sobre a vida se movendo. e nós estamos indo bem, moço. muito bem.
força e amor, sempre.
vc me emociona às vezes...
força e amor, sempre amigo.
(é toda a história, as mãos se armando, rangendo seus impulsos, cuidando dos seus lastros. e vem a criação nossa de cada dia refazer o lugar de tudo, dar ao fluxo a possibilidade de vida.)
isso tá de cara nova,
gostei
acho que ler isso enquanto escuto sigur rós não foi uma boa escolha não.
é, sem palavras por aqui...
Normal moça. É o mesmo processo que embaralha nomes e datas na cabeça dos idosos, embora algumas imagens lhes permaneçam claríssimas. É o tempo e a distância. E os nossos caminhos, que não se cruzam mais.
força e beleza.
sempre.
Simone, eu tava ouvindo Sigur Rós todas as vezes em que me debrucei sobre esse texto. Aliás, eu quase não tenho ouvido outra coisa.
um beijo.
para voce...
"Oceano"
Piove sull'oceano
Piove sull'oceano
Piove sulla mia identità
Lampi sull'oceano
Lampi sull'oceano
Squarci di luminosità
Forse là in America
I venti del Pacifico
Scoprono le sue immensità
Le mie mani stringono
Sogni lontanissimi
E il mio pensiero corre da te
Remo, tremo, sento
Profondi e oscuri abissi
E' per l'amore che ti do
E' per l'amore che non sai
Che mi fai naufragare
E' per l'amore che non ho
E' per l'amore che vorrei
E' per questo dolore
E' questo amore che ho per te
Che mi fa superare queste vere tempeste
Onde sull'oceano
Onde sull'oceano
Che dolcemente si placherà
Le mie mani stringono
Sogni lontanissimi
E il tuo respiro soffia su me
Remo, tremo, sento
Vento in fondo al cuore
E' per l'amore che ho per te
Che mi fa superare mille tempeste
E' per l'amore che ti do
E' per l'amore che vorrei
Da questo mare
E' per la vita che non c'è
Che mi fai naufragare
In fondo al cuore
Tutto questo ti avra
Te e a sembra tutto normale
Josh Groban...
bela canção.
Lembrou-me "O Ventre do Mar". A segunda parte de "Oceano Mar" na qual um grupo de pessoas se encontra à deriva sobre uma jangada em alto-mar.
Naquela parte ele diz que a verdade parecia outra coisa, qdo vista de terra firme. Que era uma verdade que era "calma e regaço, uma verdade feita para nós". Mas em alto-mar, ela se mostrou como uma ave de rapina: "Que revirou a vida desse modo que o charco imundo da humilhação humana é o único chão onde não nasce nada que não seja verdadeiro." É que a vida se passa mesmo em alto-mar.
E os que a viram, a verdade, os que a viram como o velho Darrel, "permanecerão para sempre inconsoláveis, INCONSOLÁVEIS".
Tenho a esperança de que essa estória seja apenas a visão de olhos exaustos, machucados demais pra ver na vida outra coisa que não dor. Pq deve haver mesmo, uma porção de dor que nos quebra no meio, que nos enlouquece ou que, na melhor das hipóteses, nos deixe "para sempre inconsoláveis".
Mas enquanto essa dor não chega, e há aqueles para quem ela não chega nunca, uma sorte, se vc pensar bem, enfim, enquanto ela não chega, sigamos perseguindo o único antídodo que nos é permitido: a beleza.
E dela, a força. A força que às vezes cobre os mortos com sorrisos inexplicavelmente vitoriosos. E reconciliados. Não é uma vitória isso? É claro que é.
Assim como o é o simplesfato de "continuarmos a continuar", apesar de todas as perdas irreparáveis. Afinal, como dizia a bela Shatzy Shell (nada a ver com o cara do posto de gasolina): "Ninguém é tolo o bastante para achar que pode chegar em algum lugar de outro modo que não acumulando feridas".
Recentemente a Giovanna me trouxe de Portugal um livro novo do Baricco. Fala sobre isso, sobre estancar dores, ou sobre engoli-las em seco, vencê-las afinal. E tudo "Sem Sangue".
Há um fio de paz no meio disso tudo.
obrigado pela música, mesmo.
força e amor. sempre.
para voce...
"Oceano" - tradução
Chove sobre o oceano
Chove sobre o oceano
Chove sobre a minha identidade
Relâmpagos sobre o oceano
Relâmpagos sobre o oceano
Rasgam com luminosidade
Talvez lá na América
Os ventos do Pacífico
Descobrem a sua imensidade
As minhas mãos se agarram
Em sonhos tão distantes
E o meu pensamento vai até você
Remo, tremo, sinto
Profundos e escuros abismos
É pelo amor que te dou
É pelo amor que não sabe
Que me faz naufragar
É pelo amor que não tenho
É pelo amor que queria
É por esta dor
É este amor que tenho por você
Que me faz superar estas verdadeiras tempestades
Ondas sobre o oceano
Ondas sobre o oceano
Que docemente se acalmará
As minhas mãos se agarram
Em sonhos tão distantes
E a sua respiração sopra em mim
Remo, tremo, sinto
Vento em volta do coração
É pelo amor que tenho por você
Que me faz superar mil tempestades
É pelo amor che te dou
É pelo amor que eu queria
Neste mar
É pela vida que não existe
Que me faz naufragar
No fundo do coração
Tudo isso terás
E para você vai parecer tudo normal
Postar um comentário
<< Home