11 janeiro 2007

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 1: o início da queda.

Férias, período sem shows, sem nada pra fazer em Goiânia, e eu digo que faria qualquer coisa pra sair daquela rotina monótona. Não sabia a besteira que estava dizendo. No fim de janeiro recebo com certa surpresa a notícia: “meu filho, seu tio vem passar uns dias aqui em casa”. Peraê, que tio? “O Geraldo", diz ela. O Tio Geraldo? Aquele que eu vi pela última vez há uns nove anos atrás, quando ele veio a Goiânia comprar não sei o quê pras lojas dele? “Uhum, ele mesmo”. Embegeci.
Bem, vocês precisam saber, o tio Geraldo sempre foi o mais distante dos três irmãos da minha mãe. Na infância me lembro dele com a barba abundante me pegando no colo e contando piadas que, na época, eu, com meus cinco ou seis anos, já achava sem-graça. Acontece que eu era novo demais pra entender aquelas piadas. O tempo passou e as coisas mudaram um pouco: pouco tempo depois ele se mudou pro interior de Rondônia e nos visitou após uns quatro anos. Eu, por volta dos onze, entendi perfeitamente cada uma de suas piadas, e não as achei exatamente sem-graça. Era mais que isso. Eram simplesmente terríveis! Inacreditavelmente ruins! As piores de todos os tempos! A bem da verdade, em certo sentido, nem eram exatamente piadas. Não havia as escutado de ninguém. Ele as inventava todas! Querendo, poderia se dizer que era um procedimento literário.
Eu, bem, eu me acabava de rir. Mas ria de passar mal, de encher os olhos d’água, de olhar pra minha mãe, que fingia assistir a novela – não se conseguia escutar nada da TV, é claro – com um olhar de quem pede misericórdia. Eu estava sendo massacrado pelo humor non-sense de Tio Geraldo, e não conseguia parar de rir. Não pelas piadas em si, claro. Mas por ter sido pego de surpresa pela imagem de um sujeito que conta as piores piadas que você já ouviu na vida, e começa a engasgar com o próprio riso antes mesmo que elas tenham chegado ao final. E nós perdíamos (perdíamos?) horas e horas nessa brincadeira. Ele bebendo e contando piadas, eu rindo até precisar do auxílio da minha mãe que, convencida de que aquilo não devia estar fazendo bem à minha saúde, me arrastava pro quarto com um discreto “tá na hora de dormir, meu filho”. E eu ia, ainda degustando os últimos fiapos de risada, com uma mão na barriga que doía, castigada pelo efeito cômico da noite, e a outra acenando pro tio que dizia “boa-noite” e piscava pra mim como quem diz “amanhã tem mais”. Havia um clima bom, de satisfação, em casa naqueles dias. E foi a última vez que vi o Tio Geraldo, até aquele carnaval. Porque, vocês devem se lembrar, o Tio Geraldo tava chegando pra passar uns dias.
E chegou na manhã do dia primeiro de fevereiro, com uma mala modesta e uma roupa amarrotada, como se não fosse o endinheirado que era. Tio Geraldo havia tomado uns investimentos que tinha guardado e comprou a franquia de uma rede de lojas de eletro-eletrônicos, instalando-se no interior de Rondônia. E por uma dessas situações que ninguém sabe explicar, o negócio deu certo e parece que, desde então, Tio Geraldo vivia com certa grana. Mas não havia mudado nada, percebi logo que cruzou a porta da sala. Cumprimentou minha mãe, minha avó, fazendo um barulho dos quinhentos e, por último, cumprimentou a mim. Me ergueu do chão como se eu ainda tivesse os onze ou doze anos da última vez em que nos vimos. Mas eu havia acabado de cruzar a casa dos vinte.
O dia estava ótimo. Aquele tipo de alegria fácil que os sentimentos familiares de uma família ligada por laços sinceros são capazes de despertar. Quando, de súbito, Tio Geraldo solta a notícia, como se jogasse uma cascavel em cima da mesa. Mas não a cobra inteira de uma vez: primeiro a cabeça, depois o corpo e, por fim, a calda. Parecia balançar o chocalho a um centímetro do meu nariz.
– Fico até o fim do mês, se não for incômodo a essa família fabulosa! Mas a semana de carnaval vou passar em Caldas Novas.
E eu teria me limitado a um pensamento tipo “cada doido com sua mania”, não fosse o detalhe de ele ter acrescentado, passando a mão sobre minha cabeça amistosamente e me descabelando: – Vamos eu e esse meu sobrinho, porque temos muitas risadas atrasadas para por em dia!
Minha mãe teve uma daquelas engasgadas homéricas e se retirou subitamente da mesa, enquanto Tio Geraldo me fitava com um sorrisão no meio daquela mata negra que tinha no rosto, como que esperando minha expressão de contentamento. Então acrescentou: – Não vai ter que pagar nada, já comprei os abadás! Não é uma quente, filhote? Há, hã? Quentura! – E me dava tapas no ombro enquanto, lá de dentro, eu ouvia a gargalhada abafada de minha mãe, que havia se trancado no banheiro para rir de minha desgraça. Ela sabia que eu estava numa enrrascada.
Primeiro veio o pânico, os olhos de meu tio sobre mim, aguardando minha reação, e eu com um puta branco na cabeça, sem ter idéia do que dizer, até que disparei a frase mais inacreditável que já proferi – e uma das quais mais me arrependi até hoje: Poxa tio, que legal! – E dá-lhe um sorriso amarelo na cara e Tio Geraldo me espremendo num abraço de quebrar costelas. A barba me roçando o rosto como que num prenúncio de que o pior ainda estava por vir. Claro que estava.
Depois veio a reflexão sistemática. Eu andando de um lado pro outro no quarto, olhando pros meus poster do Pantera, do AC/DC, do Nevermore, e suplicando. Vamos Phil, eu comprei todos os seus discos originais, não me deixe na mão agora, sim? O que eu faço. Nos discos do Pantera o desgraçado urra feito um animal mas, naquela hora, no início da minha Via Crucix – e, meu Deus, eu seria crucificado de abadá? – não dizia nem uma palavrinha sequer.
Por fim veio a fase da calma. Aquela calma que só os desesperados conseguem ter – os que vêem sua casa pegando fogo, os que recebem uma sentença de morte, os que vêem o time do coração levar um gol de frango, aos quarenta e quatro do segundo tempo, quando precisava de um empate pra ir pra prorrogação. Eu, que nada podia fazer, aceitei meu destino tentando dissimular alguma dignidade e sentei na cama após ligar o som no talo. Enquanto o Max urrava “waaaaaar for territoooooory” no meu ouvido, eu adquiria, cada vez com mais clareza, a certeza de que estava condenado: contrariar Tio Geraldo estava fora de cogitação.
Minha mãe era cruel. Uma vez pegou uma camiseta minha, dobrou as mangas e encostou-a em meu peito, como fazem as costureiras para ter certeza das medidas da peça. Disse: – Vai ficar uma graça de abadá! – E ia pra cozinha dando fartas gargalhadas. Você sabe, por mais que sua banda favorita seja o Morbid Angel, ou até o Deicide, não se pode mandar a mãe tomar no cú, certo? Eu me resignava. Doutra vez atendeu um telefonema enquanto eu estava no banho. Adorava os meus amigos. Se alguém me visitava uma vez ela te servia alguma coisa, pedia desculpas pela modéstia do lanche e não se importava com os coturnos, com os cabelos ressecados, ou com as camisetas pretas, esbranquiçadas de tão velhas. E se vc ligasse ela perguntaria pela saúde, pela família e diria Deus te abençoe antes de me passar o telefone. Uma graça, ela, você pode pensar, e teria certa razão. Mas nem tanto. Também era de um sadismo que deixaria o próprio Sade estarrecido.
Naquele dia era Larissa no telefone. Menina linda que eu havia conhecido num show no DCE-UFG. Do banheiro eu ouvi minha mãe gritar: – Meu filho, é a Larissa. Quer saber onde você vai passar o carnaval. Digo pra ela ligar depois ou falo que você vai com o seu tio pra... - E antes dela terminar a frase eu estava arrancando o telefone de suas mãos, de toalha e todo ensaboado, deixando um rasto de água atrás de mim. E dá-lhe minha mãe rindo casa adentro... Uma víbora.
Foi nesse mesmo dia que tive meu último ímpeto de salvação, minha última tentativa de fuga. O Segundo, claro! Tinha que ligar pro Segundo! Ele era a única pessoa capaz de entender a nós dois, a mim e ao Tio Geraldo, ao mesmo tempo! Ele gosta de rock, como eu, e tem um humor completamente non-sense, como meu tio! Tinha que ter uma solução.
– Alô, Segundo? Cara, tô ligando porque tô num apuro... Não, não, não é nada grave. Quer dizer, é sim, mas não é problema com grana nem com mulher. Sim, minha mãe também tá boa, Segundo, me escuta. O problema é meu tio, meu Tio Geraldo, você não conhece ele. Chegou pra passar uns dias com a gente aqui e quer que eu vá passar o carnaval com ele, com tudo por conta.
O Segundo, como era de se esperar: – Porra, e esse é o teu problema? Eu levei uma ré monstra num show da Two Beers semana passada e vou ter que passar o carnaval tomando catuaba com o Junim no fundo da Hocus Pocus, porque ninguém nessa cidade dá a mínima pro underground! Deixa eu ir no teu lugar então!
– Segundo, cê não tá entendendo. O problema é o lugar onde ele quer me levar. E eu não posso contrariá-lo! É uma pessoa querida, tá crente que tá me agradando. Pra você ter uma idéia, me perguntou se eu não achava o esquema “quentura”, Segundo. Quentura, pode?
Ele me pergunta qual seria o lugar. Eu, respiro fundo e digo.
– Caldas Novas.
E escuto quando ele cai na gargalhada. Ele tenta dizer alguma coisa, mas não consegue, parece estar perdendo o fôlego de tanto rir. Tenta articular alguma palavra mas só sai um “ai ai ai”. E eu, como um homem que afunda na própria miséira, acrescento, antes de desligar o telefone: e de abadá. Clique.
O Segundo tava tentando não morrer de rir naquele exato momento, portanto, não podia me ajudar. Definitivamente, eu tava fodido.
Passei os dias seguintes dispensando convites de amigos. Encontrei uma mesma desculpa pra dar a todos, pra não soar iverossímel: iria passar o carnaval na fazenda de um primo chegado que sofrera um acidente e não poderia ir pra farra nenhuma até se recuperar. Os primos e os amigos mais próximos haviam decidido ir pra fazenda da mãe do cara pra dar uma força, não deixar ele morrendo de tédio sozinho, e bebericar uma cerveja. Pronto. Bastante convincente Limados os malas que tinha coragem de dizer “então eu vou também” – o povo sempre querendo beber de graça – agora era aguardar o fim chegar.
Na véspera do primeiro dia de carnaval, enquanto arrumava minha mala, meu tio bateu à porta e abriu-a um pouco, apenas o bastante para aparecer seu rosto grande, o sorriso abundante: – Estamos prontos marinheiro? Prontos para navegar no mar da diversão, hã?
Eu repeti comigo mesmo pron-tos-pa-ra-na-ve-gar-no-mar-da-di-ver-são. E acrescentei num sussuro: socorro. Mas não havia ninguém me ouvindo, então...
– Claro tio! Vamos bombar!
Meu Deus, o que tava acontecendo comigo? Alguém me dá uma catuaba?
Manhã do dia seguinte, jogo a mala no bagageiro e entro no carro. Ponho os óculos escuros pra que minha mãe não veja minha cara de cachorro-que-caiu-da-mudança. Mas ela é impiedosa. Enquanto meu tio entra no carro, após se despedir de minha vó, ela dá a volta e toma meu rosto entre as mãos através da janela e diz: – Divirta-se meu bem, tome muita água. Lembre-se, dançar sem beber água pode te desidratar, sim? – E meu tio arremata: pode deixar, o garoto tá vendendo saúde, pra ele e pro mulheril todo lá de Caldas! – E eu me ponho a pensar naquelas meninas com três quilos de maquiagem na cara e a blusinha do abadá amarrada pouco acima do umbigo. Devidamente assediadas por moçoilos de braços fartos e óculos escuros sobre os cabelos cheios de gel. Definitivamente, eu precisava de uma catuaba.
Quando dobramos a primeira esquina meu tio diz: – Ontem comprei um CD de rock pra ouvirmos na estrada. – E antes que o disco comece a tocar, consigo ler o nome do ábum. É Música para Acampamento, do Legião. Tem horas na vida, meu amigo, que o que resta é abraçar o capeta. Ele me passa um cigarro, com ar de quem faz a maior das travessuras, e levanta o punho com o indicador e o dedo mínimo erguidos. Sim, meu tio é metal, morram de inveja – e que venha o abadá.
(continua...)
Thanks ao Homero pela ajuda na revisão ortográfica.

5 Comments:

At 4:48 AM, Anonymous Anônimo said...

já ganhou ...

 
At 2:42 PM, Blogger Dan Portugal said...

Curioso... rs rs rs
(mas, se posso ousar, reveja a revisão. Ainda há erros)

 
At 9:45 PM, Blogger `´é`´ said...

ah... ortgrafia a gente inventa pra se distrair...
ja viu a ortografia fonetica de assis brasil

 
At 1:19 AM, Anonymous Anônimo said...

Cara,
nem terminei de ler mais tá mt bom isso aqui.
Parabéns!

Escreva mais pérolas como essa!

 
At 4:34 AM, Anonymous Anônimo said...

trama em doses homeopáticas, né?
vejamos...
pensava que só os dignos do Undergound o frequentasse...
Persuasão ou enredo, juro que minha vontade foi de te resgatar, risos.
Avante.

 

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