12 janeiro 2007

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 3: a crucificação

Virei num gole um copo de Hi-Fi que havia preparado no quarto e senti o corpo começando a ficar mais leve. Embaixo do abadá duas camisetas pra dar sorte. Uma do Ratos, que o Guga me deu antes da viagem, "pra dar sorte", segundo ele, e outra da Hocus Pocus, claro. Se existe isso de “universo astral”,”energias espirituais” ou o escambau, uma coisa deve ser certa: um roqueiro sob as bençãos do Junim tá melhor que um roqueiro por conta própria. Segui.Quando estávamos a cerca de dez metros da entrada da zona do trio ainda pensei que podia ter ligado pro Beto. Ele é culto, sensível, iteligente e, principalmente: é comprometido e pop star ao mesmo tempo. A carreira no Violins lhe conferiu a habilidade do raciocínio veloz. Sempre tem que pensar rápido pra escapar do assédio das fans e deixar a Dani orgulhosa (com razão, diga-se) do homem sério que possui. Mas eu já estava rendido. Além do quê, o Beto é isso tudo que eu falei mas, como todo mundo sabe, também é uma bicha. No final ia acabar dizendo preu ouvir meus sentimentos e seguir meu coração, ou algo assim. Ou diria que num Estado liberal eu sou um indivíduo autônomo e capaz de gerir meu destino dentro das normas instituídas por lei, o que não me ajudaria muito. Enfim, eu era uma ovelha – ainda que negra – sendo levada pro matadouro.

Então pensei: era melhor acabar com aquilo logo. Tomei meu tio pelo braço e acelerei o passo. Queria cruzar logo aquela fronteira, me atirar logo naquele inferno, como se isso pudesse fazer o tempo passar mais rápido, como se pudesse ameninzar o efeito devastador dos “vamo lá, eu quero ouvir”, que já chegavam impiedosos aos meus ouvidos. Fechei os olhos, acelerei ainda mais o passo e, enquanto arrastava meu tio pelo braço ele dizia “eeeeeeta fiote! Calma lá que as muié não vão fugi não, nem o mé! Êta energia!”. E tudo que eu queria era energia. A energia de um raio certeiro sobre a cabine daquele trio elétrico ou, pelo menos, na minha cabeça. Sinto o meu corpo se chocar ao dos foliões, protego-me com o braço diante do rosto, meu tio grita coisas ininteligíveis atrás de mim em meio a risadas enquanto o puxo e avanço, avanço, avanço... até me chocar com algo. Sinto que diante de mim há uma superfície, na qual me apoio ofegante antes de abrir os olhos. E quando os abro, lá esta ela. Linda! Resplandecente! Com seus traços perfeitos, suas curvas exatas, e todas aquelas marquinhas que eu poderia reconhecer com a ponta dos dedos mesmo na mais plena escuridão. A CATUABA! O balcão era de uma dessas barracas que vendem bebida e, por Deus, ELES VENDIAM CATUABA!Arranquei afoito uma nota amassada de dois reais do bolso, pedi uma sem sequer saber quanto custava, paguei e virei as costas sem saber se havia sobrado troco ou se tinha ficado devendo algo. Tio Geraldo dançava animado, logo a minha frente, e toda menina que passava ele soltava um “ô saúde!” ou um “ê fartura!”. Não dizia gostosa nem qualquer obscenidade. Era preciso saber elogiar as meninas com respeito, era o que pensava. E mais uma vez eu me lembrei do Ruy. Decerto concordaria, claro.Virei metade da catuaba de uma vez, respirei um instante e matei a outra metade. Pronto. Somando a dose de vodka com suco de laranja tomada lá no quarto e a catuaba virada no gargalo, o leitor deve supor que eu já me encontrava consideravelmente tonto. Ou “tontinho” como dirão outros dotados de maior tolerância alcóolica. O fato é que, à essa altura, o leitor também já deve ter imaginado qual era o plano: ora, se ali vendia catuaba eu estava salvo, havia uma saída, o sofrimento teria fim! Eu podia simplesmente APAGAR!O detalhe é: se você conhece catuaba sabe que não é tão fácil apagar com aquilo. Porque embora seja uma bebida forte, seus componentes são estimulantes, deixam o metabolismo a mil, e te impedem de dormir. O resultado é que o porre de catuaba é um inferno por que você não consegue apagar, mas à certa altura, também não consegue mais andar, ou falar, ou , sequer, raciocinar direito. Daí fica no chão feito uma ilustração da Divina Comédida de Dante, tentando agarras as pernas de quem passa, grunhindo expressões de socooro ou impropérios ininteligíveis (essa sacada é do Pierre, do Violins – querido, receba essa homenagem como um pedido de desculpas tardio pelo vômino na sala do seu AP, e o estenda à Bianca, ok?). Na hora eu, claro, não pensei nisso. Não era só uma questão de ficar bêbado. Tinha que ser catuaba! Era mais que uma bebida, era um ser ali comigo, entendem? Com ela eu não estava só! Ela me entendia. Rumei então, com passos rápidos, para a barraca de bebidas quando aconteceu, pela primeira vez, o que eu tanto temia: com zilhões de watts de potência o primeiro “TIRA O PÉÉÉÉ DO CHÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO” me pegou de costas. Uma pancada bem no meio da espinha.

Quem tivesse visto suporia que eu havia tomado um tiro. Tio Geraldo, felizmente, achava-se entretido com duas moças. Por um instante desacelerei o passo, olhei para os lados meio atônito, os lábios trêmulos, rodei uma, talvez duaz vezes em torno do meu próprio eixo, a visão nublada. Abaixei, apoiei-me sobre os joelhos ofegante e esperei, não sei quanto tempo. Talvez dois ou três minutos. Não sei como, consegui chegar por fim à barraca de bebidas.

– Cerveja?
– Outra Catuaba, por favor.

Enquanto me afastava da barraca sorvendo aquele líquido furta-cor, dessa vez em goles lentos, de acordo com o estado de choque em que me achava, pensei na saída que onze entre dez machos encontrariam para a solução. As mulheres, claro. Só havia um jeito de redimir essa situação. Pegando o maior número de chicleteiras possível! E parti para o ataque. Mas era tarde demais. A catuaba começava a agir e a comunicação estava se tornando uma missão delicada pra mim. Não que nesses ambientes você tenha que se comunicar bem. Normalmente não dá pra escutar muito o que as pessoas falam, e quando você escuta preferia ser surdo. O problema é que quando fico muito bêbado começo a falar cuspindo. Me aproximei de duas meninas, que se mostraram até gentis. Estavam abundantemente maquiadas – note: só uma chicleteira é capaz de rivalizar com uma indie ou uma gótica no quesito maquiagem, e eu não arriscaria dizer quem sairia vencedora.

Elas brilhavam, mesmo, tinham sombras verdes nos ólhos e seu lábios pareciam os de quem acaba de comer um pastel de rodoviária, cintilavam por causa do gloss (thanks Vivis, pelo auxílio na nomeclatura rs). Era visível que tentavam dar continuidade à “conversa”, mas seus olhos estavam entre-abertos, pra se proteger das partículas de saliva que eu lançava ao ar. E eu falava, falava, falava. Não tenho a mais vaga lembrança do que dizia, mas acho que falava pra que elas não tivesse a oportunidade de abrir a boca. Enfim, se afastaram sorrindo sem-graça, e eu sequer pude ter a sensação de perda. Era um arruinado, havia descido no mais fundo de mim, estava atolado num charco de indignidade. Lembrei das camisetas que trazia sob o abadá e pus-me a passar a mão sobre elas ansiosamnete, os olhos fechados, voltados para o céu. A imagem de um demente, que não se lembrava de ser tão resistente à catuaba e que só queria o milagre da inconsciência. Segui de olhos meio fechados o caminho que já havia decorado, rumo à barraca de bebidas, e foi quando eu voltava de lá, com a aquela que, eu ainda não sabia, seria a última catuaba da noite, que a temeridade me acometeu pela segunda vez. Como uma lança, como uma paulada, como mil flechas cravadas no meu peito (e o volume parecia cada vez mais alto!) eu recebi o tiro de misericórdia: SAAAAAAIIIIIII DO CHÃO CAAAAAALLLLLLDAAAAAAAS! E enquanto o povo vibrava ensandecido eu parei, cambaleando feito um animal ferido, ergui sofregamente os braços ao céu como o Cristo na cruz (caro leitor, câmera em tomada superior, por favor) e soltei um brado de desespero, um urro que foi tragado pelo barulho ensurdecedor da multião que respondia em massa ao apelo do cantor. Um relâmpago cortou o céu, fez-se um segundo de claridade sobre o fundo escuro dos meus olhos que já nada enxergavam, e a última imagem que consigo ter é a da catuaba tombada no asfalto, ao lado do meu rosto. Consegui ainda tocar com a língua o fio escuro daquele líquido que escorria em minha direção. Senti na boca a aspereza do asfalato. E apaguei.

(continua)

4 Comments:

At 2:16 PM, Blogger Dáborah Dias said...

Ajuda dos "violins"(BOm!).
Que drama bem feito. Fiquei com dó, no primeiro tiro.
Tadinho!

 
At 3:14 PM, Blogger mundosdevidro said...

Não foi bem uma ajuda direta rs. Na verdade usei aquela sacada do Pierre sobre a Divina Comédia porque certa vez ele me disse aquilo, quando presenciou (e me acolheu rs) o maior porre que já tomei na vida rs. Desde então, não posso nem sentir cheiro de catuaba...

 
At 7:41 PM, Blogger Renato Rocha said...

chiiicléeeetêee.

 
At 5:05 AM, Anonymous Anônimo said...

dos insights literários à consultoria do gloss não pude deixar de me envolver. Quem quiser noções de mundometal vai ter essa via crucis como indicação, rs.
De alopatia, parece que agora o caso é cirúrgico, ameaça a existência.

 

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