27 janeiro 2007

o avesso dos anos

Era um caderno de capa marrom, pequeno, sem linhas ou margens. Nele Dona Laura escrevia pequenos aforismos aos quais, evidentemente, não chamava assim. Honrava a tradição que reza serem os idosos entes privilegiados, capazes de sintetizar verdades universais em uma ou duas linhas, na forma de um ditado ou de um dizer como que oracular, com finalidades mágicas, preventivas e/ou preditivas. A isso chamam alguns sabedoria e ele, do alto de seu ceticismo, das cicatrizes de tantas leituras, embora tivesse clareza de que, do ponto de vista estritamente racional, essa reverência dedicada aos velhos constituía uma completa tolice, uma espécie de covardia do intelecto ante o tempo e a vida, ante o agora, um conservadorismo grosseiro, vulgar mesmo, embora pensasse tudo isso, era sempre tomado por um sentimento de sacralidade quando via Dona Laura, a cabeça heróicamente resistindo ao branco dos anos, sentada na mesa da cozinha ou no banco de madeira no fundo do quintal, o lápis em punho, desenhando sobre a folha branca alguma constatação ou assombramento, alguma concordância em relação a uma suspeita antiga ou, talvez, a ratificação tardia de algum grave engano.

Que o passar dos anos produza sabedoria, ou mesmo alguma expansão do espírito, algum adestramento do ser, não era idéia que o encantava – o equívoco, pensava, é a elevação dessa impressão ao posto de norma. Um velho pode ser a materialização de uma derrota inenarrável, tanto mais estúpida quanto maior o número de seus anos. Há, evidentemente, quem tenha aproveitado cada gota de tempo para se imbecilizar, se degradar, se corromper cada vez mais.

Não, o fascínio não estava no número dos anos, mas em sua combinação com o movimento dos olhos. Eram castanhos os de Dona Laura, de um castanho quase negro, como os cabelos. Tinham o tom de uma noz envelhecida sob a chuva, repousada na terra úmida, e se moviam lentamente. Com o tempo, haviam tornado-se opacos, como um espelho mergulhado meio metro num rio de águas calmas. Poderia-se curvar até o ponto de tocar a água com o nariz: impossível obter a nitidez do próprio reflexo. Um espírito mais determinado – ou mais carente de si – poderia ainda mergulhar a cabeça dentro d’água; não teria maior sucesso – notaria, porém, a audição corrompida. A água é um mundo, e o que está submerso estará sempre um pouco perdido, mesmo que ao alcançe das mãos. No limite, pode-se enfiar os braços n’água e erguer o espelho diante de si num gesto vitorioso, como o de quem vence a natureza, e com ela a morte, e com ela a si mesmo. Ainda assim não é certo que a isso possa-se chamar vitória. Não raro, os espelhos tomados desse modo são lançados com repulsa de volta ao rio e àquela água chama-se maldita, chama-se outra, chama-se de tantos nomes até que se possa esquecer seu nome verdadeiro. Um truque infeliz, se pensármos bem, visto que, cedo ou tarde, recorda-se: não era primordialmente uma questão de palavras. Há uma contra-partida: um espelho abriga imagens e, somente dentro delas, palavras. O que é apenas outro modo de dizer que uma imagem está grávida de outra – ou com o ventre repleto de uma outra que devorou, já que no ser é obscura a dialética entre o devorar e o dar-à-luz – e assim por diante ad infinitum. Nisso consiste boa parte do risco de evelhecer: mesmo com a benção do esquecimento, reverentemente louvada por Nietzsche – de um modo ou de outro sempre voltamos à Nietzsche – envelhecer é acumular imagens, dentro das quais palavras, dentro das quais imagens...

O fascínio estava, portanto, na imagem do ser que se debruça daquela forma sobre si renunciando, ao mesmo tempo, uma porção do saber. Interessava-lhe, antes de mais nada, o mecanismo interno daquela renúncia, a fórmula daquela ausência de desespero – usava essa expressão negativa na falta de um termo positivo que lhe parecesse adequado. Calma, serenidade, paz, mostravam-se excessivos. Talvez brandura fosse adequado. Gostava da sonoridade modesta, quase doce. Mas não tinha certeza. Por isso preferia a objetividade desse ausência de desespero. Enfim, queria saber como se envelhece sem enlouquecer.

O que é necessário, se perguntava, para manter o intelecto íntegro e as emoções com as bordas aparadas como as garras de um felino de zoológico? A jaula?. Ela, que compunha um par indissociável com a tentativa sistemática de debilitação da força alheia, de toda capacidade de ferir e, portanto, de parte da possibilidade de se defender. Aquela quietude, aquele fluir manso de um rio de águas turvas, aquele fogo brando a crepitar mesmo sob a chuva, aquela série de portas trancadas, ou às vezes apenas escoradas dentro de si – esquecidas, porém, e era isso que importava: portas deixadas para trás. E não supunha ser um processo totalmente consciente. Não era difícil imaginar que a dor era o tempero primordial daquela finesse do intelecto. Porque havia algo de bom-gosto naquilo, isso é certo. Uma certa discrição, uma ausência de gula no viver, porém sem qualquer traço de esnobismo. Apenas uma consciência estupidamente burguesa poderia negar certa elegância na economia de gestos com que Dona Laura se debruçava sobre a vida. Ou eram seus olhos que, vislumbrando um futuro no qual o parkinson seria o menor dos males, deitavam-se admirados sobre a intrepidez daquelas mãos?

Queria aprender a viver assim, com um paladar modesto, mais apto a degustar, mais fiel aos sabores; estava farto de comilanças desenfreadas, de banquetes hedonistas, embora voltasse sempre a eles, de onde o dedo na garganta, o exorcismo dos excessos – espíritos que sempre voltam –, o re-conhecimento, nos restos de comida dentro do vaso, o reconhecimento de si, um vaticínio profano milimetricamente cultivado para ofender o senso de sacralidade que trazia cravado no peito. Como o brado de um traído, de um desabrigado, de quem não consegue se livrar das promessas que cada sensação de beleza, de fidelidade, de força, lhe faziam ressurgir. Deus é um imortal, pensava consigo. Que seja esse morto-vivo que murmura promessas de redenção em meu ouvido, com a voz de um embriagado, ou aquele pronunciar lento e aveludado, que ouço quando meu corpo está em paz, ou tão castigado que torno-me a vítima fácil da esperança; que seja na forma de uma tortura incompreensível: Deus não se deixa morrer, e agoniza dentro de mim. Havia compreendido que era Ele o que temia nos olhos de Dona Laura, era Ele a quem reverenciava quando Dona Laura murmurava encantamentos com o polegar junto à sua testa, quando designava um santo para cuidar de cada aspecto de sua vida; quando doente um, quando triste outro, quando em perigo ainda outro.

De todos seus encantamentos, minha velha querida, de todas as suas santas bruxices não houve uma, não houve uma que jamais me livrasse do medo último, da fraqueza e da dignidade últimas. Não houve unguento, com suas sacras folhas, não houve benção que me curasse. E porque levei tanto tempo pra entender, minha velha querida, que você não tentava me salvar? Que não tentava salvar sequer a si mesma. Que não há, afinal, salvação possível que não comece por desistir um pouco da idéia de uma benção absoluta.

Eu não sei, meu bem, mas é que tivemos que renunciar tanta coisa pelo caminho... E agora sua imagem me atinge e, embora não me liberte, me traz calma. Seria tolice te supor mais plena que qualquer um de nós, e também tolice a inveja que sentem os intelectuais frustrados ante aquelas pessoas de alma simples, cujos ombros seguem desprovidos do fardo dos conceitos - que para nós, também é luz, essa luz focal, dirigida. Eu não subestimo sua dor. Mas gosto de ver-te, Dona Laura, porque és um mundo que eu nunca habitarei.

Jamais sentira vontade de ler aquele caderno. Já lhe bastava a pele, os olhos, os gestos, a dança sempre tão regular na qual Dona Laura inseria seus ritos, na qual hava feito caber seus amores, suas feridas, e aquele cuidado com o qual tocava com o polegar sua testa.

– Deus te dê luz, e te faça leve o coração.

2 Comments:

At 1:34 PM, Anonymous Anônimo said...

(Vou comentar sem comentar...rs)
Meu repertório de sonhos está bem representado naquela lista :P e nunca sonhei com conventos, apesar de "viver" em um.

Já localizei aquele arquivo no meu quarto. Falta xerocar.

Beijo.

 
At 2:56 PM, Anonymous Anônimo said...

reparei uma coisinha que não sei se concorda nem o que vai achar nem se estou certo: por vezes seu estilo lembra o kundera, especialmente quando discorrendo sobre algo em um momento de interrupção da narrativa. não quando se aprofunda MUITO, como no caso da água (a propósito, achei INCRÍVEIS em demasia as metáforas acerca do espelho na água), mas antes quando fala sobre a velhice. é um elogio, claro.

o parágrafo que fala sobre "De todos seus encantamentos," ficou MARAVILHOSO... putamerda... é de tanto conteúdo e intensidade de idéias...

gostei tanto do todo e de partículas... eu percebo uma coisa que, acho eu, paira acima.

 

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