04 fevereiro 2007

Caio Fernando Abreu

Depois de ler conto Sem Ana Blues, pus-me a perguntar se há na literatura brasileira alguém que tenha trabalhado de forma tão, tão, tão... (genial, profunda, humana, dura, verdadeira?) o sentimento de luto, no sentido mais profundo, psicanalítico, do termo. Esse Vai Passar me fez suspeitar ainda mais que a resposta é não. Mas isso os anos dirão, já que a literatura brasileira ainda me reserva tantos caminhos ainda não percorridos. Por hora fico lendo e relendo isso aqui, ao som de Sem Aviso, da Maria Rita, impressionado com isso de uma música e um texto se casarem de forma tão precisa, como se tivessem sido feitos um pro outro. Tão aí, o conto e a letra da música:

Vai Passar

Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...
A personagem está sentada numa escrivaninha. A escrivaninha é muito velha, tem madeira lascada, riscada, manchada de muitas tintas. Falta a gaveta de cima. Pelo vão pode-se ver o que há no interior da segunda gaveta: uma garrafa de Pepsi-Cola vazia e um pedaço de sanduíche de queijo ou/e mortadela. Sobre o tampo, um maço de Hollywood pela metade e muito amassado, uma caixa de fósforos e um pires de cafezinho como cinzeiro. A personagem Lê um livro – de onde não consigo ler o título. A personagem usa tênis brancos (foram brancos), calças de brim azul, desbotado e sujo, um suéter amarelo de lã, esgarçado nos cotovelos. A personagem não olha em volta. Em volta, muitos moças & rapazes com pastas, falando alto (pode-se ouvir, nitidamente, a palavra “dialética”), supõe-se que sejam estudantes. Nas paredes vários cartazes. Num deles, pode-se ler claramente “Cultivar as Almas – ciclo de palestras filosóficas”. Em outro “Você na prévia”. E também: “Pela prática da Liberdade”. Por todos esse detalhes, se supõe que o cenário onde está sentada a personagem seja o diretório do centro acadêmico de alguma faculdade (mas de onde estou não consigo ver claramente). Há uma porta grande de vidro, semi aberta. Lá fora, às vezes chove, às vezes faz sol. Secas e molhadas, as pessoas que entram não param nem falam com a personagem. A personagem está vendendo alguma coisa. De onde estou não consigo ter certeza do que se trata. Mas parecem entradas, dessas para o teatro, cinema, música ou coisa assim. Ninguém pára. Todos falam entre si (pode-se ouvir, nitidamente, a expressão “contradição do sistema”), mas ninguém com a personagem. A personagem pára de ler e olha em volta para ver se está sendo observada. Lentamente. Depois introduz rápida o braço no vão da primeira gaveta (disfarçando com o livro) e, no fundo da segunda, apanha o resto do sanduíche (queijo? Mortadela?). Não vê que eu vejo. Então morde.

Sem Aviso
(Composição: Francisco Bosco / Fred Martins)

Anda
tira essa dor do peito, anda
despe essa roupa preta e manda
seu corpo deslembrar
Cantavira dor pelo avesso

Canta
larga essa vida assim as tontas
Deixa esse desenganar

Calma
Dê o tempo ao tempo, calma
alma
Põe cada coisa em seu lugar

E o dia virá, algum dia virá
Sem aviso
então...

12 Comments:

At 12:41 AM, Anonymous Anônimo said...

doí.

 
At 7:37 PM, Anonymous Anônimo said...

sim.

 
At 1:17 AM, Blogger Anika said...

devo concordar!!!
em literatura e dor.

 
At 1:42 AM, Anonymous Anônimo said...

doi.. doi muito.. como um braço amputado.. que n se regenera sozinho.

 
At 1:18 PM, Blogger mundosdevidro said...

Mas passa. A gente sabe que passa.

 
At 7:35 PM, Blogger Dheyne de Souza said...

"Contidamente, continuamos."
Continuamente, contidos.

Você me fez ter vontade de reler Caio. Amanhã mesmo, hoje não dá mais...

 
At 2:48 AM, Blogger Nanah Triveloni said...

Aqui, tá doendo muito.
Tanto tempo depois, eu encontro este texto aqui...talvez, eu seja uma destas pessoas que, neste exato momento, sente tudo isso...é uma dor que não cabe no mundo.
E cá estou, "ligando" para o teu blog para "contar, contar e contar"...
é isso.

 
At 12:07 AM, Blogger Gaby said...

A dor é igual em vc, em mim, e se passou pra vc, vai pssar pra mim! Dói, dói, dói!

 
At 4:33 AM, Anonymous Anônimo said...

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At 1:42 AM, Anonymous Anônimo said...

LINDO! Qd passa a dor, fica uma saudade boa... Ao ler esse texto senti isso. =)

 
At 1:16 PM, Blogger Alberto Pereira Jr. said...

Cheguei aqui por indicação de um amigo. depois que escrevi "Vai passar, sempre passa.." no twitter.. pois é.. estou nesse momento e o texto do Caio tão profundo e belo me deu um alento. A música da Maria Rita com certeza casou muito bem!

 
At 10:32 AM, Anonymous Belisa said...

Fiquei emocionada.

 

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