08 agosto 2007

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Não foram necessários mais que os primeiros minutos para sentir: havia algo em suspenso. Era manhã ensolarada e conhecia-o bem, esse algo. Em dias assim achava vagamente elegante crer nos astros: um desenho qualquer que lhe regesse os passos, um consolo estético, pensava. E dispunha ritualisticamente a mesa para o café-da-manhã que tomaria sozinha. Não cria em quase nada, mas conhecia bem dias como esse e sabia que era preciso se calar, tanto quanto possível, era urgente cessar a voz, em toda parte de si abrandar o verbo, ousar o silêncio mesmo sabendo-o escuro. É possível que não voltasse, sem sinais pelo caminho, o silêncio demanda coragem.

Partiu uma fruta em quatro partes, aspirou-lhe o aroma com reverência. Um rito aquilo? Um culto, talvez. – os objetos de sua vida não mais que despojos de uma guerra antiqüíssima e, talvez daí, a perene sensação de ter nascido devastada. Não, isso não lhe roubava mais a paz. Olhos fechados mordeu a fruta e sorveu um longo gole de leite, puro e gelado. Em breve acenderia um cigarro.

Na guerra, pensou, a sede enlouquecia os homens, disse baixinho: a fome enlouquecia os homens.

Sabia como proceder. Lenta e branca levantou-se e, ficando a mesa como estava, abriu bem a janela recebendo forte no rosto o bafo do monstro sempre arquejante: a cidade diabo-velho sopra vento e ruído, todos os barulhos do mundo, que importava? O silêncio que cultivava não temia ruídos, antes sobre ele erguia-se, florescia como uma blasfêmia. Porém cristalina - que isso não costumam ser as blasfêmias. Tinha carinho pela cidade, saudava-a cúmplice: ambas tão doentes. Fechou a janela, acendeu o cigarro.

Na guerra, pensou, erguiam-se trincheiras, o que devia ser muito sábio, afinal, evidência de uma grande e antiga sabedoria, erguer trincheiras.

Foi quando na cozinha entraram três soldados, dois deles carregando o terceiro, e deitaram-no sobre o piso branco, derrubando no caminho a torradeira e três copos sujos de sobre a mesa. Havia vidro e sangue pelo chão quando o mais alto e velho disse, fitando-a ajoelhado sobre o ferido: proteja seus pés há vidro e sangue pelo chão. Então foi até a sala, calçou a sandália e ligou o som.

Queria a música que contivesse mais silêncios, que existisse como contraponto de si mesma. Queria ouvir, entre as notas e os acordes, as pausas. Era sempre a mesma música, espalhada em todas as outras e, em dias assim, sempre a encontrava e a ouvia repetidas vezes, até não escutar mais nada.

Nessas horas costumava se dirigir ao fogão, como agora. Preparava um chá que nunca bebia. Gostava apenas do cheiro se espalhando pela casa, preparava-o enchendo os pulmões, depois o deixava por alguns minutos no fogão, até esfriar, e então jogava fora. O chão da cozinha estava agora branco e límpido como sempre. Sorriu antiga e acendeu outro cigarro: não tardaria a chegar a noite e, com ela, o sono, o silêncio, a claridade.

À porta que ligava a cozinha ao corredor apareceu o soldado, o mesmo que zelara por seus pés, e perguntou quanta ajuda ela poderia fornecer. Ao que respondeu: nenhuma. E claro estava que não era tanto uma questão de poder quanto de querer. Passou pelo soldado sem dele fazer caso e dirigiu-se ao quarto – começava a enfadar-se, o que era um desequilíbrio num dia como aquele. Sobre a cama, em silêncio, o ferido arquejava, tomava um punhado de lençol com as mãos trêmulas e depois o soltava, arranhava novamente o colchão, tornava a agarrar o lençol. Ela, sentindo como uma agulha o tédio lhe tocar, respirou fundo e, das costas do outro soldado, o mais moço e assustado, arrancou o que parecia ser um fuzil. Com ar cansado enfiou-lhe boca adentro do ferido o cano e disparou. Sem ruídos. Era uma casa de silêncios, aquela, em dias como esse.

Então começaram a dançar, os dois soldado. Ela, achando-os ligeiramente engraçados, desajeitados, depositou a arma sobre o que morrera e retornou à cozinha. Sentada à mesa, anuviada, lembrou que de uma outra vez houve um anjo. Lembrou com ternura de como o tinha posto sentado numa antiga cadeira elétrica, aprumando-o bem, sem jamais deixar de olhá-lo nos olhos. Havia muita cumplicidade entre ambos quando ela, abrindo a portinhola de metal na parede ao lado da geladeira, pensou contente que mataria um anjo – e que aquilo era cafonérrimo. Puxou a alavanca do meio – a da esquerda desligava a energia do chuveiro, a da direita deixava o apartamento às escuras –, enquanto pensava: eu vou matar um anjo. A luz da cozinha, se tornava fraca até quase apagar-se, por causa da descarga elétrica, toda vez que descia a alavanca. E ela retribuía com o olhar encantado. O anjo se contorcendo.

Preferia-o aos soldados, mas nunca era possível escolher. Emtão tirou a sandália e, voltando à sala, pensou: talvez seja uma questão de música, talvez seja preciso uma música ainda mais leve para quando a noite chegar.

O dia seguia em silêncio.



Esse texto é duplamente devedor de bandas que ouço sempre: o título é o mesmo de um disco do Sigur Rós e não consegui pensar em nada que ilustrasse tão bem a narrativa. É também uma pequena homenagem, já que devo uma parte de mim a essa banda. A imagem do anjo eletrocutado, por sua vez, foi inspirada numa frase de uma música do Silver Mt. Zion que diz : "they put angels in the eletric chair, straight up angels in the eletric chair". Sempre quis cunhar um "retrato verbal" dessa imagem, e cá está.