29 março 2007

Meses atrás publiquei separadamente os quatros fragmentos que compõem esse conto. Recentemente voltei a trabalhar neles e cá estão em sua forma final (?). Trata-se de um naufrágio. Não há mar, barcos ou navios. Somente pessoas. E deve bastar.


O Juízo

I.

Não era raro: entrava no apartamento, batia a porta atrás de si e, sem acender as luzes, ia até o antiquísimo guarda-roupas preto. Na última gaveta achava-se o vestido bege que a mãe costumava vestir para ficar em casa. Era coberto de minúsculas rosas vermelhas. Fitava-o por alguns instantes e então, trazendo-o junto ao peito, deitava-se por horas e horas, desperta, olhos arregalados como os de um animal em fuga.

Um dia estancou à entrada do quarto, tinha onze anos e viu a mãe nua, de costas, o rosto entre as mãos. Estava sentada na cama, trêmula por causa do choro compulsivo. Ficou quieta. Tinha os olhos cravados naquela cena e assim permaneceu até que aquela agonia se convertesse em silêncio e a mãe, como quem junta todas as forças de que dispõe, se levantasse como uma enferma e a encontrasse ali, apoiada na maçaneta, com um par de olhos que nada perguntavam, nada temiam, apenas mediam, avaliavam, como quem se pergunta até onde se pode chegar com uma dor que não se vai nunca. Era já impiedosa, ainda criança.

Não que desejasse fazê-la sofrer, mas, naqueles momentos, não lhe poupava do peso obsceno e da violência singular de que são capazes um olhar de criança. Acompanhava todos os dias aquele inferno e sabia que a mãe ouvia de seu silêncio uma pergunta perene, uma só, simples e clara: “Até quando? Até quando vai aguentar, Mãe?” E devia mesmo ter um quê de crueldade naquilo, a pequena com aqueles olhos diáfanos, nos quais não se via vestígio de solidariedade e, para ser exato, nem mesmo de acusação. Era naquela indiferença que a mãe via o juízo impiedoso de um criança nova demais pra entender do que se tratava, mas já lúcida o bastante para perceber que era um naufrágio aquilo. Estava afundando, isso não era difícil perceber do alto de sua autoridade infantil – milhares daqueles choros contemplados. Estava afundando, a mãe, e a infante assistia àquela derrota de camarote.

Às vezes acontecia de a mãe trancar a porta, quando queria chorar quieta e livre do juízo da filha. Mas tão somente se recompunha e abria a porta, econtrava-a de pé bem ali, sem uma palavra. Ela que não era mais tímida que o normal, que não temia estranhos nem era dada a grandes silêncios mas que, ali, diante da mãe, apenas olhava, e deixava bem claro que sabia: estava afundando feito um barco velho. E isso, isso não era papel de uma mãe, nisso viria a crer. Não é coisa de mãe, perder-se quando a cria, ainda infante, carece da orientação que não pode criar para si. Que não fosse por mal, mas a alguém essa culpa deveria cobrir. Que repousasse sobre ela então, o juízo e o estigma: DESERTORA. Traria junto ao corpo essa marca, como gado queimado em brasa, e para sempre sua memória seria julgada, para sempre sentenciada, a fraca, a egoísta, a infame, a desertora, para sempre derrotada, sob os olhos de todos humilhada e desistida de si. Disso a infante não esqueceria – e por isso, no fundo, não se perdoaria: assistira a decadência e o fim da mãe, que sucumbiu com um par de olhos que trazia sempre aquele pedido miserável, aquela rastejante suplica por perdão.

II.

Era uma enferma, tal qual a mãe o fora. E sabia disso. Se insistia acrescentando nós à corrente de sua história – que sentia como parte de uma teia outrora despedaçada – era tão somente pela recusa de deixar-se afogar no oceano de vergonha que o nome de sua mãe lhe sugeria. A mãe que, ao fim, rastejava como um animal ferido, como se tivesse sido adestrada para ser outra coisa que não uma mulher, em outro lugar que não o mundo – como que educada para a morte, com o sádico rigor de mãos onipotentes, sabotada por um destino com o nome de Deus.

Esses pensamentos trazia envergada sob a égide de sua religiosidade confusa: o Deus a quem ofertava preces de auto-humilhação devia ser um porco, um infame, mil vezes imundo. Mas uma imundice onipotente. A certa altura, no entanto, suas palavras perdiam a força e seus insultos se tranformavam em súplicas de perdão e de esclarecimento: por quê deixara sucumbir daquele modo um mulher que só queria viver? Sem muito mais, no fundo era só disso que se tratava, de não enlouquecer, instante após instante era isso que carregava em suas preces. Que humor doentio achou que valesse a pena criar um mundo de criaturas perdidas a se devorar umas as outras com a sacrossanta missão de manter-se capazes de louvar o nome do Deus altíssimo enquanto a derrota lhes escorria pelas pernas, ensopandom meias, sapatos, umidecendo colchões e desmanchando sorrisos antes que estes se mostrassem por inteiro?

Mas eram preces curtas essas. Logo se mostravam um excesso. Logo sua linguagem se mostrava tola e cheia de afetações denunciadoras de sua fraqueza de espírito. Terminava por concluir que até diante de Deus era preciso ter certo estilo, certa elegância no sofrer.

Acima de tudo, em confronto com os seus limites, queria saber se aqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, se eram uma profecia ou uma exortação. Perguntava-se a que distância estava daquela imagem patética e agonizante, do supremo fracasso que fora aquela que lhe trouxera ao mundo. Não haveria de ter sido apenas para a perpetuação do horror. Queria ter a certeza de que seria ela a por fim àquele mal; sentia como um imperativo inegociável a missão de frear a marcha altiva e furiosa daquela morte, talvez guardada no sangue da família, gravada nos genes dos derrotados que achavam-se galhos acima em sua árvore genealógica. Da mãe ouvira que a avó era uma morta-viva, chorando pelos cantos a viuvez e a perda do primogênito, morto de febre antes mesmo de falar.

Que a visão de um mundo de concreto a lhe envolver, com luzes inebriantes e promessas infinitas de gozo, guerra e ternura, com olhos infinitos e infinitas mãos, que se insinuam e se recolhem, que um mundo assim, no qual um olhar apressado vê o rosto moribundo de tudo aquilo que se pretendia história, que justamente esse cenário pulsantemente febril seja o habitat de um espírito atormentado por fantasmas familiares, sempre a temer do espelho que este seja um portal para o inferno, soa como um anacronismo. Mas um ouvido atento que, colado ao asfalto da rua onde ela escreveu os primeiros passos, espere por estáticas indecifráveis em meio ao silêncio noturno, será recompensado para além de qualquer expectativa. Porque ali, e em cada centímetro da cidade arquejante, há um emaranhado de vozes murmurantes que, se dissecadas com minúncia, hão de revelar o espírito assustado com que essa festa de concreto teme, até a medula, os espíritos mal esconjurados que assombraram seus antepassados. O mal do trabalho incessante do relógio, no entanto, é que seu ruído regular traz não apenas esses antigos pavores, nem sempre perceptíveis a olhar apressadol: há também o rosto de nossos pais, que de olhos arregalados pedem-nos sabe-se lá que providência, que justiça, que consolo afinal. E aquele que for fraco o bastante para enxergar tanto, deve necessariamente enterrar juntos todos os fantasmas – os de ontem e os de hoje – sob pena de fazer-se em tantos pedaços que nem o Todo-Poderoso poderia contar em sua eternidade misericordiosa.

Tudo isso pensava enquanto buscava livrar-se do peso daqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, que a fitavam dia e noite. Que a redenção viesse trajada de preto, que fosse uma cegueira, mas que a livrasse daquele olhar de louca moribunda com o qual sua mãe havia lhe cravado. Que a fizesse para sempre orfã e bastarda, mas aninhada na doce ignorância de sua história. Um milagre! Que Deus honrasse uma vez na vida seu supremo lugar no cosmos e estendesse sua mão salvadora e tocasse seus olhaos e a tornase cega! Tu, oh Deus altíssimo, dai cegueira aos que vêem, dai-nos a paz de suportar tua ausência infinita sem que tenhamos que contemplar o horror! Cega-nos, Deus, cega-nos! E dizia amém repetidas vezes, numa voz sussurante, os olhos arregalados, o vestido florido apertado contra o peito.

III.

Nada a ver com destreza, isso descobrira. Nada a ver com a habilidade em manusear os pedaços de mundo que lhe caiam nas mãos. O que faltava era gênio, uma forma fabulosa de conectar dois ou três pedaços da vida de um jeito tal que alguém diria: “como diabos essa menina fez isso”? Queria compensar todo o desarranjo com a criação de uma beleza irrevogável, resistente à tudo, e que a tudo infectasse, uma beleza que fosse violência e vingança, o último lastro de dignidade para quem foi feita em pedaços.

Porque isso eu já sei: estou feita aos pedaços e apenas meus olhos permanecem inteiros. Com eles vejo os cacos de todos e encontro minha paz. A paz modesta de quem aquietou um monsto dentro de si. Aquelas canções que minha mãe ofertava-me no seu culto de mãe, enquanto me olhando nos olhos esquecia que o mundo era mundo, aquelas canções que se grudaram dentro de mim como uma profecia indecifrável – profecia de quê Deus meu? –, elas me salvaram quando eu, o fôlego ausente, pus-me a cantar como quem se despede.

E eis que se cumpria a profecia

e tudo se revelava certo entre o caos

aquele monsto lentamente se aninhando

dentro de mim

sentindo nas patas o chão da minha

alma

adormecendo enfim exausto.

Depois de tudo, só restavam os meus olhos, que lentamente se fechavam sob a voz onipotente de minha mãe. Os meus olhos ainda inteiros, novamente sobreviventes, e aquela voz que me abençoava o sono e me garantia, mesmo sem poder, que não havia nada no mundo maior que aquele amor. Ela acabava por me salvar, mesmo eu sabendo que tanto amor era ela a se salvar também.

Mas esse sentimento que me cerca é a culpa por não ter sido fiel à vida até as últimas consequências? Pois quem foi que me incutiu na alma essa culpa por buscar a calma de que preciso? E quem me convenceu de que isso era ser infiel? Essa vaidade é o monstro que ei de embalar com as velhas canções de minha mãe quando, recém-desperta do sono que se avizinha, me achar novamente inquieta e convicta de que é uma questão de gênio: sobreviver a mim mesma e extrair do ventre profundo da vida a seiva e o ouro que tornam possível o humano. Isso serei eu desperta: os olhos abertos e aquelas canções a me correr pelo corpo.

Porque eu, que me protejo do infinito cultivando esse coração laico, ouço vir de algum lugar de mim uma palavra que, surpreendentemente, se mostra insubstituível, e a verto em santidade:

amém.

IV.

Se me contassem, não acreditaria, tamanha a obviedade. Porque para além da angústia, da estupidez, da pobreza dessa cena, há, antes de tudo e em cada detalhe, uma obviedade desconcertante. Cada fôlego é um clichê e é com profunda vergonha que me percebo imersa nesses pensamentos. E talvez seja esse o único elemento sempre novo, sempre renovado e inédito: a vergonha que dissimulo em mil outras formas. Porque para cada constrangimento que me acomete sem que as pessoas a minha volta possam notar, tenho uma expressão correspondente, um sorriso, um gesto, um franzir de testa. Tudo absolutamente falso e de uma eficácia à toda prova. E se outrora esse dom me pareceu um desvio de caráter hoje me orgulho dele, alegrando-me no fato de que aprendi a esconder-me um pouco do mundo, na medida certa – aprendi o tempo, o tempo certo do meu recolher. Não costuma falhar e quando falha corro em meu próprio socorro, deslizo os dedos sobre meu semblante inacreditavelmente jovem – foi um piscar de olhos o tempo, foi uma dança rápida, e ninguém poderá nos culpar por não nos termos atentado às exortações daquela gente cheia de cicatrizes – deslizo os dedos por meu próprio rosto e me perdôo. E quando o perdão não vem, quando não consigo fabricá-lo em mim, aquieto-me e espero o tempo passar. Assim deitada, vendo-o ir – o tempo feito um pilão que ela erguia vigorosa todo fim-de-tarde – lembro-me dela, Senhora, segura em seus ditados, força erigida com a montanha dos anos, sabedoria, sabedoria, sabedoria, mesmo quando equivocada, por causa da beleza daquelas rugas e daqueles olhos pequenos e casados, estaria sempre certa, mesmo contra todo o mundo, e me dizia pra não me deixar levar assim, pra não deixar o coração em paz quando começasse a bater devagar. Dizia “é preciso anima-lo meu bem, é preciso ensiná-lo a não dormir, porque, não se engane meu bem, um coração que dorme não acorda jamais”. E quando é que eu vou entender como ela pôde acreditar que seu coração permaneceu sempre desperto? O que sabia ela sobre o sono? Monumentos não dormem. No fundo eu sabia, era sobre minha mãe que falava. Aquele coração que adormecera exausto. E apenas porque não há agora desespero nem nada, porque me deito para ver o tempo passar e prometo-me levantar – apenas me deixem reposuar sim?, por Deus, um minuto –, porque não há agora nada que me mova, sonharei com calma um ritmo adequado para os meus pés, ritmo que não desfaça o coração sonolento, que não desmantele os mecanismos de proteção que inventei para minhas noites, um ritmo que não me faça esquecer as mentiras que inventei para proteger-me da solidão e da vergonha. Assim, sobre mim pesa apenas o pecado de caricaturizar o indizível, essa blasfêmia logocêntrica. Mas não há quem me condene. Estão todos zonzos demais e eu posso sorrir em paz vendo essa dor que se vai como veio: do nada. Tudo de uma obviedade constrangedora.

2 Comments:

At 10:37 PM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Reprise? E será que preciso republicar as diretrizes da Poly sobre esse conto?
Sem mais. Bju

 
At 10:48 AM, Blogger mundosdevidro said...

Algumas coisas foram reformuladas, vc deve ter percebido. Antes a coisa tinha um ar de inacabado; eu mexi um pouco aqui e acolá e dei a coisa por finalizada - com título e tudo, veja só que graça.

Sobre a Poly, ela não gosta da personagem, vc sabe rs.

Bju.

 

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