27 abril 2006

II.


Era uma enferma, tal qual a mãe o fora, e sabia disso. Se insistia acrescentando nós à corrente de sua história – que sentia como parte de uma teia outrora despedaçada – era tão somente porque se recusava a deixar-se afogar no oceano de vergonha que o nome de sua mãe lhe representava; ela que, ao fim, rastejava como um animal ferido sob o olhar agudo da infante Angela, como se desde o ventre materno, tivesse sido adestrada para ser outra coisa que não uma mulher, em outro lugar que não o mundo – como que sabotada, educada para a morte, com o sádico rigor de mãos onipotentes. Isso pensava sob a égide de sua religiosidade confusa: o Deus a quem ofertava preces de auto-humilhação devia ser um porco, um infame, mil vezes imundo. Mas um porco onipotente. A certa altura, no entanto, suas palavras perdiam a força e seus insultos se tranformavam em súplicas de perdão e de esclarecimento: porquê deixara sucumbir daquele modo um mulher que só queria viver? Sem muito mais, no fundo era só disso que se tratava, de não enlouquecer, instante após instante era isso que carregava em suas preces. Que humor doentio achou que valesse a pena criar um mundo de criaturas perdidas a se devorar umas as outras com a sacrossanta missão de manter-se capazes de louvar o nome do Deus altíssimo enquanto a derrota lhes escorria pelas pernas?

Mas eram preces curtas essas. Logo se mostravam um excesso. Logo sua linguagem se mostrava tola e cheia de afetações denunciadoras de sua fraqueza de espírito. Terminava por concluir que até diante de Deus era preciso ter certo estilo, certa elegância no sofrer.


Acima de tudo, em confronto com os seus limites, queria saber se aqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, se eram uma profecia ou uma exortação. Perguntava-se a que distância estava daquela imagem patética e agonizante, do supremo fracasso que fora aquela que lhe trouxera ao mundo. Não haveria de ter sido apenas para a perpetuação do horror. Ângela queria ter a certeza que seria ela a por fim àquele mal, que talvez corresse no sangue da família há séculos. Da mãe ouvira que a avó era uma morta-viva, chorando pelos cantos a viuvez e a perda do primogênito, morto de febre antes mesmo de falar.

Que a visão de um mundo de concreto a lhe envolver, com luzes inebriantes e promessas mil de gozo, guerra e ternura; com olhos infinitos e infinitas mãos, que se insinuam e se recolhem, que um mundo assim, no qual um olhar apressado vê o rosto moribundo de tudo aquilo que se pretendia história, que justamente esse cenário febril seja o habitat de um espírito atormentado por fantasmas familiares, sempre a temer do espelho que este seja um portal para o inferno, seria de causar surpresa. Mas um ouvido atento que, colado ao asfalto da rua de Ângela, espere por estáticas indecifráveis, vindas das profundezas do silêncio noturno, será recompensado para além de qualquer expectativa. Porque ali, e em cada centímetro da cidade arquejante, há um emaranhado de vozes murmurantes que, se dissecadas com minúncia, hão de revelar o espírito assustado com que essa festa de concreto teme, até a medula, os espíritos mal esconjurados que assombraram seus antepassados. O mal do trabalho incessante do relógio, no entanto, é que seu ruído regular traz não apenas esses antigos pavores, nem sempre perceptíveis ao nosso olhar febril; há também o rosto de nossos pais, que de olhos arregalados pedem-nos sabe-se lá que providência, que justiça, que consolo afinal. E aquele que for fraco o bastante para enxergar tanto, deve necessariamente enterrar juntos todos os fantasmas – os consanguíneos e aqueles que os assombravam. Sob pena de fazer-se em tantos pedaços que nem o todo poderoso, para sempre infinito e honrado, poderia contar em sua eternidade misericordiosa. Tudo isso pensava Ângela enquanto buscava livrar-se do peso daqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, que a fitavam dia e noite. Que Deus a cegasse então, mas que a livrasse daquele olhar de louca moribunda. Que a fizesse para sempre orfã e bastarda, mas aninhada na doce ignorância de sua história. Um milagre. Que honrasse uma vez na vida seu supremo lugar no cosmos e, estendesse sua mão salvadora, tocasse seus olhaos, e a tornase cega – Tu, oh Deus altíssimo, dai cegueira aos que vêem, dai-nos a paz de suportar tua ausência infinita sem que tenhamos que contemplar o horror. Céga-nos, Deus, céga-nos. E com os olhos arregaladaos, o vestido florido apertado contra o peito, Angela repetia com uma voz cada vez mais baixa, cada vez mais impossível, "amém, amém, amém..."

3 Comments:

At 10:44 PM, Anonymous Anônimo said...

identificações acontecem.

 
At 11:30 PM, Anonymous Anônimo said...

Pare de torturar seus personagens, isso vai te cansar. Pare de, como o porquinho alemão ao qual rende louvores, mastigar sua própria idéia até que perca o gosto, que canse a mandíbula. Dê um pouco de idiotice ao mundo que propõe, um tanto de absurdo que seja suficiente para que seus personagens não tenham que trabalhar germanicamente para ilustrar sua visão verde-escura da vida. Permita uma liberdade necessária à vida. Ou não.

 
At 12:25 AM, Blogger mundosdevidro said...

Taí, uma crítica muito interessante. Como a maioria de suas colocações, aliás.

A minha adorada Polyana Christina fez uma lista das coisas que não suporta e, entre coisas impagáveis como "pessoas fofuchas" há uma expressão muito interessante: "melancolia auto-induzida". Realmente, trata-se de algo bastante patético. E absolutamente não é disso que se trata essa nova estória que estou compondo.

Aliás, ultimamente tenho tido a crescente preocupação de trabalhar com uma linguagem mais seca, pra evitar afetações.

O que acontece é que ainda me interesso muito por temáticas relacionadas ao sofrimento psíquico. Mas isso não implica uma visão pessimista do mundo, não mesmo. A questão é que sempre me chamou muito a atenção a quantidade monumental de dor que há nessa vida. E há muito beleza nisso tudo. Não na dor em si, claro, mas em tudo que o homem constrói pra se preservar, pra proteger a si e aos seus amores. Essa teimosia, essa obsessão em resistir mesmo que a vida sopre com a força de mil tornados já produziu tanta beleza nesse mundo! E eu acho isso absolutamente comovente. E, na verdade, trata-se de um olhar que pode mesmo minar um olhar pessimista, não em nome de um otimismo ingênuo, mas de uma esperança calculada, realista, que leva em conta a morte e a degradação, sem no entanto tornar-se cega para a belaza e para a alegria.

Creio ter sido a sensibilidade à essa beleza que brota do sofrimento humano, e do empenho em resistir, (ou tão somente do pavor e da ânsia de se defender) o que faltou ao "porquinho alemão" (que expressão mais pateta iuahiuaah só podia ser coisa sua rssss). Mas qto a isso nós já chegamos a um acordo né? Eu já concordei com vc: Nietzsche era um porco autoritário. E vc já cncordou comigo: tratava-se de um porco absolutamente genial.

No mais, não é verdade que minha visão da vida seja "verde-escura" rs. Há mais cores aqui. E vc sabe disso. Portanto seja mais generoso comigo, afinal eu te faço dar um monte de risadas. Não posso ser assim tão rabugento... rs


Os abraços de sempre.

 

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