06 janeiro 2006

Esse é um texto que escrevi há alguns meses... não sei exatamente quando. Hoje estava olhando os meus arquivos e o encontrei. Me pareceu bonito. Taí.


Talvez o que mais me constrangesse nela fosse aquele sentimento de vergonha por ser infeliz, que eu notava em tantos dos seu gestos. E eu, que da fraqueza aprendi a tirar alguma ternura, tocava seus cabelos como quem acariciava uma doente terminal. Aquela vida escapando por entre os próprios dedos, aquele tempo selvagem e impiedoso. E eu pensava comigo que cabelos castanhos permanecem castanhos mesmo quando de nós sobram apenas os ossos.

Às vezes, quando eu chegava do trabalho antes dela, me sentava numa poltrona antiga que compramos juntos no começo, e me colocava exatamente na direção da porta. Queria que eu fosse a primeira coisa que ela visse, que meus olhos a pegassem desprevinida. Só assim ela me deixaria por a mão onde doía. E então eu estendia meus dedos, tocava aquela dor já tão antiga, e tudo permanecia igual. Apenas um ligeiro consolo se insinuava no ar. A esperança remota de uma vida ou de uma morte serena. Porque quem pode devolver à uma menina como aquela uma vida q se esvai assim? Quem pode curar alguém de um cansaço tão grande, desfazendo histórias, contando-as de uma maneira nova, que não doa tanto, que torne os braços mais leves? E se você é alguém que não acredita na idéia de vencer a si mesmo.. bem, aí é qvc não pode fazer outra coisa senão olhar aquilo tudo com uma tristeza que de tão grande te protege de todas as outras, porque te entorpece.

Acabava por me pegar com os meus pensamentos em Jesus. Pensando que aquilo tudo, aquela promessa enorme, aquele gesto intenso de quem diz “levanta e anda!", que aquilo tudo tinha de ser verdade, ou que Deus, de alguma forma, tinha de ser verdade. Para que não fosse verdade a obscenidade de uma menina como aquela, a lançar de joelhos suas preces rumo à um céu vazio. Para que não houvesse sempre aquela voz trêmula e aquele olhar cansado, de quem se desculpa porque vai morrer.

5 Comments:

At 2:08 AM, Blogger Paulo André Araújo Dias said...

Pra ser o primeiro a comentar: ninguém pede desculpas porque vai morrer, é algo como perder os dentes na infância. No mais, AMEI ver a palavra Jesus num texto seu, os quais tanto admiro...
Um grande abraço

 
At 12:24 PM, Blogger mundosdevidro said...

ah paulo, pede sim. tam gente que pede desculpas até pelo ar que respira, uma coisa triste de se ver. e qdo se não se desculpa pelo menos se sente culpado... isso acontece. e qto à Jesus, não foi uma recaída rs apenas sempre me pareceu belíssima a imagem de alguém de joelhos, entregue a uma prece sabe-se lá qual... eu sempre pensei assim: se o céus estiver mesmo vazio, essa cena é de uma violência enorme, uma obcenidade mesmo. grato pela apreciação moço. aquele abraço.

 
At 3:30 PM, Blogger Polysbela said...

Muito bonito mesmo o seu texto... um psiquiatra massa de 1947 argumentava sobre dois e opostos mecanismos geradores de culpa, um através de sugestão social (culpa-funcional), resultante dos tabus e medo de perdas de afeto de outrem... e outro através de convicção moral (culpa-valor) oriunda da consciência clara de ter violado um padrão original de valores próprios, como um autojulgamento feito com postulada liberdade. Quando li “sentimento de vergonha por ser infeliz” remeti a idéia à culpa-funcional... (e que situação a de quem fortuitamente se depara c/ um pedido de desculpas desses, não verbalizado, e expresso c/ a própria vida... credo.)

Sobre a “tentação” de se comunicar c/ supostas divindades, o (artista) Cioran é sarcástico: “Quem não conhece esses medos, esses estremecimentos, essas vertigens que nos aproximam do animal e dos problemas últimos ? Nossos joelhos tremem sem dobrar-se; nossas mãos se buscam sem juntar-se; nossos olhos se erguem e não distinguem nada... Conservamos este orgulho vertical que confirma nossa coragem; este horror dos gestos que nos preserva das efusões; e o socorro das pálpebras para cobrir olhares ridiculamente inefáveis. Nosso deslize está próximo, mas não é inevitável; ...existe uma dignidade que nos preserva de desaparecer em Deus e que transforma todos os nossos instantes em orações que não faremos jamais.”

Bjo.

 
At 4:03 PM, Blogger mundosdevidro said...

"orações que não falaremos jamais.."... é isso. eu calo preces. e as transformo em outras coisas. menos terapêuticas talvez, menos salvadoras... mas a salvação tb já deixou de ser aquela prmoessa de eternidade... é a salvação nossa de cada dia, nossos anseios de eternidade educados, disciplinados, transformados em amor, em arte, em trabalho. mas é bem isso. há um sem número de preces caladas em mim. é q supor aquele que as ouviria não traria apenas o consolo indizível do absoluto... mas a dor insondável de que esse absoluto na verdade nos escapa... gaarder certa vez disse que se Deus existe ele é um mestre de disfarces e de deixar rastros... essa dialética é dolorosíssima.. por isso abdiquei dela... agora somos eu, a terra, meus inimigos e meus cúmplices... e, em algum lugar, umj vago respeito, quase uma saudade (pq eu acho que vão se aproveitar desse termo pra tirar conclusóes exageradas? rs) em relação à uma vaga e inalcansável idéia: Deus

 
At 4:08 PM, Anonymous Anônimo said...

é realmente bonito. um sentimento forte de não há mais nada e uma busca por um algo mais, foi minha percepção. essa tristeza que entoperce esbalda, parece que dá pra mergulhar nela e escapar de mais cortes, como se ela fosse um bálsamo-armadura, sei lá...

 

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