31 julho 2007

O Silêncio Monstruoso

Para a Flor,
com todo amor:
"Até o céu, sempre."
"E tal entrega é o único ultrapassamento que não me exclui. Eu estava agora tão maior que já não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao longe."
Clarice Lispector, "A Paixão segundo G.H."


Não que seja hora de muitas palavras: o centro disso tudo é um silêncio monstruoso, o coração de um Deus cuja existência não nos é dada - embora nos possa ser tomada.

Em seu Ficções há um conto de Borges chamado "As Ruínas Circulares". Nele há alguém que pretende sonhar um homem: "Quería soñar un hombre: quería soñarlo con integridad minuciosa e imponerlo a la realidad."

Talvez seja possível, nesses termos, sonhar a Deus. Parece-me um dom de poucos. Certamente não o meu. E não é que eu lamente, não chega a tanto. Acontece que a imersão no sagrado tem um alto preço, que eu não saberia como pagar. Vislumbrar o que há por trás da dimensão meramente comunicativa da linguagem, ousar, ainda que por um instante, pousar os olhos sobre a profundidade inesgotável do nome próprio, já é uma claridade que cega.

Também a religiosidade profana que agora me queima tem um alto preço: uma porção irrevogável de silêncio e solidão que tem, como sua outra face de Janos, a nossa ambígua relação com a linguagem: passaremos a vida a dizer coisas e, ao final, claro, teremos alcançado no máximo o sucesso de uma débil metáfora, cunhada com o melhor de nosso espírito, com o mais escuro e abundante sangue. Não nos é dado esbanjar vitórias. Por outro lado, se tivermos sorte ou sabedoria o bastante, forjaremos uma liturgia qualquer feita de concreto e sêmem.

O preço, eu me referia ao preço.

O que sei é que minha vida tem os joelhos dobrados, o rosto em terra, como os antigos profetas diante do Altíssimo. Eu, que não posso crer em Deus porque tenho fé na palavra - talvez não tanto por escolha, mas porque tudo em mim conspira para isso - e que vejo na prece um total absurdo - diante do Absoluto, é óbvio, só caberia um total silêncio -, sinto-me cada vez mais reverente diante da vida. E, em certo sentido, cada vez mais desapegado dela.

Não é de plenitude que se trata, pelo contrário: é a assunção radical da precariedade que, paradoxalmente, faz insinuar-se uma calma oceânica: no inferno, um silêncio monstruoso. Trata-se daquilo que Walter Benjamin, na improvável - e trágica - união de romantismo alemão, cabala, surrealismo e marxismo, chamou de "o Ser indefinível da verdade".

Na nossa literatura parece ter sido Clarice Lispector quem melhor entendeu isso. Talvez por essa razão um de seus melhores livros termine de forma tão solene: "E então adoro".