II.
Mas eram preces curtas essas. Logo se mostravam um excesso. Logo sua linguagem se mostrava tola e cheia de afetações denunciadoras de sua fraqueza de espírito. Terminava por concluir que até diante de Deus era preciso ter certo estilo, certa elegância no sofrer.
Acima de tudo, em confronto com os seus limites, queria saber se aqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, se eram uma profecia ou uma exortação. Perguntava-se a que distância estava daquela imagem patética e agonizante, do supremo fracasso que fora aquela que lhe trouxera ao mundo. Não haveria de ter sido apenas para a perpetuação do horror. Ângela queria ter a certeza que seria ela a por fim àquele mal, que talvez corresse no sangue da família há séculos. Da mãe ouvira que a avó era uma morta-viva, chorando pelos cantos a viuvez e a perda do primogênito, morto de febre antes mesmo de falar.
Que a visão de um mundo de concreto a lhe envolver, com luzes inebriantes e promessas mil de gozo, guerra e ternura; com olhos infinitos e infinitas mãos, que se insinuam e se recolhem, que um mundo assim, no qual um olhar apressado vê o rosto moribundo de tudo aquilo que se pretendia história, que justamente esse cenário febril seja o habitat de um espírito atormentado por fantasmas familiares, sempre a temer do espelho que este seja um portal para o inferno, seria de causar surpresa. Mas um ouvido atento que, colado ao asfalto da rua de Ângela, espere por estáticas indecifráveis, vindas das profundezas do silêncio noturno, será recompensado para além de qualquer expectativa. Porque ali, e em cada centímetro da cidade arquejante, há um emaranhado de vozes murmurantes que, se dissecadas com minúncia, hão de revelar o espírito assustado com que essa festa de concreto teme, até a medula, os espíritos mal esconjurados que assombraram seus antepassados. O mal do trabalho incessante do relógio, no entanto, é que seu ruído regular traz não apenas esses antigos pavores, nem sempre perceptíveis ao nosso olhar febril; há também o rosto de nossos pais, que de olhos arregalados pedem-nos sabe-se lá que providência, que justiça, que consolo afinal. E aquele que for fraco o bastante para enxergar tanto, deve necessariamente enterrar juntos todos os fantasmas – os consanguíneos e aqueles que os assombravam. Sob pena de fazer-se em tantos pedaços que nem o todo poderoso, para sempre infinito e honrado, poderia contar em sua eternidade misericordiosa. Tudo isso pensava Ângela enquanto buscava livrar-se do peso daqueles olhos, os últimos olhos de sua mãe, que a fitavam dia e noite. Que Deus a cegasse então, mas que a livrasse daquele olhar de louca moribunda. Que a fizesse para sempre orfã e bastarda, mas aninhada na doce ignorância de sua história. Um milagre. Que honrasse uma vez na vida seu supremo lugar no cosmos e, estendesse sua mão salvadora, tocasse seus olhaos, e a tornase cega – Tu, oh Deus altíssimo, dai cegueira aos que vêem, dai-nos a paz de suportar tua ausência infinita sem que tenhamos que contemplar o horror. Céga-nos, Deus, céga-nos. E com os olhos arregaladaos, o vestido florido apertado contra o peito, Angela repetia com uma voz cada vez mais baixa, cada vez mais impossível, "amém, amém, amém..."