05 julho 2006

O chão que se move

Aquilo era constatação. Instante duro que vem e que fica, inóspito. É preciso imagnar o que seja um instante inóspito, um minuto no qual não se pode estar, não há lugar. Naquele fragmento de tempo em que não se pode viver e no qual o coração lhe deseja boa sorte, naquele tempo suspenso e inadjetivável, ela era constatação. Um monumento de certeza o vento havia depositado aos seus pés.

E temia, temia como um animal as distâncias que haviam se instituído dentro de si. Estava bem e não tinha dúvida, responderia a quem quer que lhe perguntasse! Que perguntassem! Estava bem pra caralho mas não se aquietava. Ela feito um demôniozinho obcecado pela busca de uma certeza e no fundo da cabeça uma voz que diz “it takes dedication, it takes dedication”. Porra nenhuma que as coisas se salvariam por si só. Tinha limpado o céu, tinha apagado Deus daquele trono de merda. E tinha apagado o trono. E aquela dor só mudou de nome, uma faca d’outro corte.

Nada errado com o céu vazio. Era assim que se encontraria só e nua diante de si. Lúcida. Feito um demônio de olhos abertos. Descia porque sabia que não dava pra se acovardar agora. Descia e já não olhava pra cima. Era hora de chafurdar e ser honesta. Que fosse imaginação não importava, que fosse um sonho aquilo, um pesadelo voluntariamente vivido, tanto melhor. Seria grande e boa. E boa. No fim diriam que foi sábia, ou sã, ou terna. Porque se não fugia mais de si, não haveria nada que pudesse dar errado. Tinha de funcionar assim.

O problema é que demandava tanto fôlego aquilo. Alargar os limites de um instante pra fazer caber nele um pedaço maior da vida. Pedir dos instantes com olhar de mágoa que sejam maiores! Que sejam algo mais elástico e vital, algo mais que essa merdinha que se vai e se vai. E que não me envergonhem assim. Pedir dos instantes uma sandice dessas, quanta injustiça.

Porque o tempo não pertencia ao demônio. Antes fosse e sentiria violada, vilipendiada, usurpada sob as mãos daquele que veio pra roubar, matar e destruir! A porra do capeta mal pra caralho que lhe serviria de álibe, que lhe pouparia da acusação de fracasso, o merda do capeta era uma farsinha xoxa. E de uma cafonice sem fim.

Porque como é que não percebiam que acreditar no capeta é de um mal-gosto sem fim? A pequena Ângela acreditara. E o fizera com tanto vigor, com tanta fúria, com tanta resignação que até hoje o demônio lhe roubou a alma, no fundo é nisso que acredita. Ou a vida, as circunstâncias, os outros, os amores, a merda dos amorezinhos de merda que ela emporcalhou com aquela mão trêmula. Foram sempre os demônios mas nunca ela!

E agora era toda constatação. Interrompera o movimento descendente e respirara fundo. E os olhos ficaram tão cheios e comprimidos por dentro, como se fossem saltar da cavidade, que não fora capaz de tecer juízo. O tempo não era outra coisa que não o tempo, simples e objetivo. Não era de bom tom adorná-lo com tantas explicações. E como lhe doía, nas vísceras, a certeza de que era uma máquina de confeccionar mitologias. Sagas inteiras. Um espírito faminto, grosseiro, deseducado, que quer engolir a vida feito um morto de fome, um indigente, um ninguém-sem-nada. Engolir a vida numa ansiedade, numa euforia de dar nojo. A porra toda era uma questão de gosto, afinal. E se pegava sentindo-se culpada por essa fome doida de viver. Achava elegante saber morrer. Se contentar com a vida sem grandes escândalos, sem chamar a atenção de deus e o mundo.

E quando sentia que era vaidade aquela finessem toda o chão punha-se a mover de novo de sob os seus pés. E ela franzia a testa esboçando coragem, como o garoto que quer provar que a picada não lhe ofende tanto assim.

De repente, pifava. Era de uma vez e parava. Agora não havia mais instante nem nada. Uma impaciência quieta, não por causa do ponteiro imóvel na parede ou devido ao ar invariável da sala velha. Impaciência pelo coração que já vai começar a beter, e que comece logo, que não faça cena. Parar com essa coisa e voltar pois o que de mais digno e imortal há em nós se levantou. Aquela certeza, nova constatação sempre repetida, que vem e diz cala a boca e respiara fundo criança, não chore agora e economize esse ar que a vida vem lá.

Então no fundo do peito ouvia-se um barulho como de engrenagem. Quando pela primeira vez era de dar aflição, não se sabia se a coisa ia pegar. Mas ela velha no alto de sua certeza não esboçava receio ou tristeza. E de repente fazia-se apenas um ruído aveludado e regular, acompanhado da batida do coração que retomara prumo e seguia feito potro sarado.

Subia degrau por degrau e preparava os olhos para a luz que viria quente.

Mordia os lábios com calma dignidade. A superfície era seu destino e quando lá chegasse expiraria o ar que guardara sob recomendação e seria dia e haveria chuva ao entardecer. Nas ruas as pessoas. E ela já não mencionava nada que estivesse fora do lugar. Tudo certo como antes. Sorria quieta o dia num sorriso veloz. Os olhos não doíam e não havia nada que se parecesse com medo. Era forte como um carvalho. Não temia a terra seca sob os seus pés.

04 julho 2006

Aquele silêncio era uma prece e aquele apertar de olhos uma súplica e aquele ranger de dentes a expectativa paralisada de que alguma coisa sobrasse da fúria com que aquela vida lhe atravessava. Porque dois olhos e dois ouvidos, um corpo e um pensar, eram pouco pra uma vida tão exuberante e invasiva. Ou foi o coração que perdeu a conta dos instantes e a medida das paixões e ficou assim tão tolo, sempre aquém ou além da vida - sempre com menos do que precisa ou mais do que pode suportar. No meio daquele terror, subjugada por aquela beleza insuportável e sem nome, rogava por misericórdia com o corpo trêmulo e imerso na consciência dos próprios limites. Uma consciência que, de tão aguda, levava o nome de ausência. Misericórdia! Que alguma coisa restasse. E que entre essas coisas uma delas tivesse o seu próprio nome. E que fosse ela, viva.

ao som de Godspeed You Black Emperor