13 novembro 2005

Passe bem.

Um homem fecha a porta atrás de si, trêmulo, enfim em casa. Se despe das calças e deposita seu peso sobre uma filha que espera nua e calada, como ele mandou de manhãzinha antes de sair, enquanto lhe lambia o pescoço e jurava que a encontraria e a mataria se não estivesse ali ao entardecer, nua e sem se enxugar, após um banho frio com o sabonete que ele escolhera. Ela recebe o baque entre as pernas e a boca sobre os seios, tombando o rosto numa careta cheia de uma dor sem nome. Uma filha que morreu há anos e que é só dor e ódio por dentro... Ele termina afinal, urrando e gotejando suor; ele que havia prometido, mas começou de novo, primeiro uma vez, me perdoe, não vai acontecer de novo, depois outra e outra, sem mais se desculpar, e ela esperou todos estes dias até que ele voltasse, como se espera uma maldição desejada, para que fosse acumulada sobre ele a culpa que lhe daria a coragem necessária.

Então deixava que ele a penetrasse e derramasse dentro dela o ódio que o mataria. Porque ela o mataria. Viveria somente para isso e o mataria. Cortaria-lhe os testículos, primeiro um, depois o outro, e o obrigaria a mastigá-los. Depois se mataria. Mas até lá, era preciso aceitá-lo dentro de si, para que seu ódio se renovasse e se convertesse na coragem sem a qual talvez lhe desse um tiro na cabeça, por misericórdia (não deveria haver misericórdia), não queria que o tempo e o cansaço, o desejo de ser curada, lhe amolecessem o coração com algum tipo de piedade (não deveria haver piedade).

Ele se levanta, um sorriso confuso nos lábios, balbuciando coisas ininteligíveis (ele que também se odeia e que também quer morrer) enquanto ela se senta e, olha para o próprio sexo. Se levantar, se lavar e dormir. Precisa acordar cedo amanhã como a balconista competente que é. Bom dia senhora!, são quatro e cinqüenta, seu troco, obrigado senhor, passe bem.

06 novembro 2005

Acima de tudo, hoje, quero que a violência me dê um tempo pra respirar. Apenas o bastante para me livrar do gosto das palavras que mesmo odiando espalhei pelo ar... ou para perdoar minhas mãos por todo carinho contido. Olhos secos e um coração duro, sem auto-comiserações. Há um longo caminho que o amor tem que fazer até chegar às mãos. É esse caminho que não paro de investigar em mim. De quanto amor minhas mãos são capazes? É o que não paro de perguntar. Amor e mãos eu tenho.

04 novembro 2005

ultimo fragmento


Ana, quando eu a conheci, era uma menina que tinha lá suas reservas de ternura, tinha lá sua sensibilidade olfativa, pelo menos ao cheiro de merda que ela conhecia bem. Queria, como eu, se salvar. De si mesma e do absurdo de uma vida que ela se sabia completamente incapaz de amar. Mas no fim se tornou não mais que um feixe de raivas desordenadas. Tudo de um mal gosto imperdoável. Tinha um ponto fraco: a certa altura estava sempre querendo foder alguém, mas não sabia fazer isso sem se denunciar. Se ela te amarrasse numa cadeira e te espancasse com um taco de beisebol até a morte, ainda assim você poderia notar, sem grande esforço, o medo a lhe saltar de cada poro. E não era só medo, mas vergonha também. E aquele cansaço, aquela porra de olhar sempre entreaberto.


Pronto pessoas. Vou ver o que faço com o resto dessa tentativa de conto. Se o reformular publico aqui.

03 novembro 2005

Quieto meu filho, é só a noite lá fora.

01 novembro 2005

mais um

Vou acabar publicando o conto inteiro assim rs... bem, taí.

Foi Ana quem me ensinou a suportar todos os nojos do mundo, tudo de sujo que se faz sob as narinas de Deus. Dizia: "um espelho e um pouco de bom senso aplaca qualquer indignação". Obviamente ela não conseguia viver de acordo com esse princípio, mas acabava sempre se perdoando. É inegável que conseguimos cultivar a maior parte da intimidade que havia entre nós através desse exercício de sistematizar a percepção dos fragmentos que captávamos um do outro num todo arbitrário que nos propiciava certa calma.

Agora, diante do computador, me pego repetindo a mesma pergunta que já fiz tantas vezes: o que ela está tentando fazer a cada vez que me escreve, após longos intervalos, com este tom que pressupõe uma enorme e jamais perdida intimidade? Ana está tentando salvar alguma coisa, isso eu já entendi. Mas o quê exatamente? Não pode ser o amor, obviamente. Não pode ser.