27 janeiro 2007

o avesso dos anos

Era um caderno de capa marrom, pequeno, sem linhas ou margens. Nele Dona Laura escrevia pequenos aforismos aos quais, evidentemente, não chamava assim. Honrava a tradição que reza serem os idosos entes privilegiados, capazes de sintetizar verdades universais em uma ou duas linhas, na forma de um ditado ou de um dizer como que oracular, com finalidades mágicas, preventivas e/ou preditivas. A isso chamam alguns sabedoria e ele, do alto de seu ceticismo, das cicatrizes de tantas leituras, embora tivesse clareza de que, do ponto de vista estritamente racional, essa reverência dedicada aos velhos constituía uma completa tolice, uma espécie de covardia do intelecto ante o tempo e a vida, ante o agora, um conservadorismo grosseiro, vulgar mesmo, embora pensasse tudo isso, era sempre tomado por um sentimento de sacralidade quando via Dona Laura, a cabeça heróicamente resistindo ao branco dos anos, sentada na mesa da cozinha ou no banco de madeira no fundo do quintal, o lápis em punho, desenhando sobre a folha branca alguma constatação ou assombramento, alguma concordância em relação a uma suspeita antiga ou, talvez, a ratificação tardia de algum grave engano.

Que o passar dos anos produza sabedoria, ou mesmo alguma expansão do espírito, algum adestramento do ser, não era idéia que o encantava – o equívoco, pensava, é a elevação dessa impressão ao posto de norma. Um velho pode ser a materialização de uma derrota inenarrável, tanto mais estúpida quanto maior o número de seus anos. Há, evidentemente, quem tenha aproveitado cada gota de tempo para se imbecilizar, se degradar, se corromper cada vez mais.

Não, o fascínio não estava no número dos anos, mas em sua combinação com o movimento dos olhos. Eram castanhos os de Dona Laura, de um castanho quase negro, como os cabelos. Tinham o tom de uma noz envelhecida sob a chuva, repousada na terra úmida, e se moviam lentamente. Com o tempo, haviam tornado-se opacos, como um espelho mergulhado meio metro num rio de águas calmas. Poderia-se curvar até o ponto de tocar a água com o nariz: impossível obter a nitidez do próprio reflexo. Um espírito mais determinado – ou mais carente de si – poderia ainda mergulhar a cabeça dentro d’água; não teria maior sucesso – notaria, porém, a audição corrompida. A água é um mundo, e o que está submerso estará sempre um pouco perdido, mesmo que ao alcançe das mãos. No limite, pode-se enfiar os braços n’água e erguer o espelho diante de si num gesto vitorioso, como o de quem vence a natureza, e com ela a morte, e com ela a si mesmo. Ainda assim não é certo que a isso possa-se chamar vitória. Não raro, os espelhos tomados desse modo são lançados com repulsa de volta ao rio e àquela água chama-se maldita, chama-se outra, chama-se de tantos nomes até que se possa esquecer seu nome verdadeiro. Um truque infeliz, se pensármos bem, visto que, cedo ou tarde, recorda-se: não era primordialmente uma questão de palavras. Há uma contra-partida: um espelho abriga imagens e, somente dentro delas, palavras. O que é apenas outro modo de dizer que uma imagem está grávida de outra – ou com o ventre repleto de uma outra que devorou, já que no ser é obscura a dialética entre o devorar e o dar-à-luz – e assim por diante ad infinitum. Nisso consiste boa parte do risco de evelhecer: mesmo com a benção do esquecimento, reverentemente louvada por Nietzsche – de um modo ou de outro sempre voltamos à Nietzsche – envelhecer é acumular imagens, dentro das quais palavras, dentro das quais imagens...

O fascínio estava, portanto, na imagem do ser que se debruça daquela forma sobre si renunciando, ao mesmo tempo, uma porção do saber. Interessava-lhe, antes de mais nada, o mecanismo interno daquela renúncia, a fórmula daquela ausência de desespero – usava essa expressão negativa na falta de um termo positivo que lhe parecesse adequado. Calma, serenidade, paz, mostravam-se excessivos. Talvez brandura fosse adequado. Gostava da sonoridade modesta, quase doce. Mas não tinha certeza. Por isso preferia a objetividade desse ausência de desespero. Enfim, queria saber como se envelhece sem enlouquecer.

O que é necessário, se perguntava, para manter o intelecto íntegro e as emoções com as bordas aparadas como as garras de um felino de zoológico? A jaula?. Ela, que compunha um par indissociável com a tentativa sistemática de debilitação da força alheia, de toda capacidade de ferir e, portanto, de parte da possibilidade de se defender. Aquela quietude, aquele fluir manso de um rio de águas turvas, aquele fogo brando a crepitar mesmo sob a chuva, aquela série de portas trancadas, ou às vezes apenas escoradas dentro de si – esquecidas, porém, e era isso que importava: portas deixadas para trás. E não supunha ser um processo totalmente consciente. Não era difícil imaginar que a dor era o tempero primordial daquela finesse do intelecto. Porque havia algo de bom-gosto naquilo, isso é certo. Uma certa discrição, uma ausência de gula no viver, porém sem qualquer traço de esnobismo. Apenas uma consciência estupidamente burguesa poderia negar certa elegância na economia de gestos com que Dona Laura se debruçava sobre a vida. Ou eram seus olhos que, vislumbrando um futuro no qual o parkinson seria o menor dos males, deitavam-se admirados sobre a intrepidez daquelas mãos?

Queria aprender a viver assim, com um paladar modesto, mais apto a degustar, mais fiel aos sabores; estava farto de comilanças desenfreadas, de banquetes hedonistas, embora voltasse sempre a eles, de onde o dedo na garganta, o exorcismo dos excessos – espíritos que sempre voltam –, o re-conhecimento, nos restos de comida dentro do vaso, o reconhecimento de si, um vaticínio profano milimetricamente cultivado para ofender o senso de sacralidade que trazia cravado no peito. Como o brado de um traído, de um desabrigado, de quem não consegue se livrar das promessas que cada sensação de beleza, de fidelidade, de força, lhe faziam ressurgir. Deus é um imortal, pensava consigo. Que seja esse morto-vivo que murmura promessas de redenção em meu ouvido, com a voz de um embriagado, ou aquele pronunciar lento e aveludado, que ouço quando meu corpo está em paz, ou tão castigado que torno-me a vítima fácil da esperança; que seja na forma de uma tortura incompreensível: Deus não se deixa morrer, e agoniza dentro de mim. Havia compreendido que era Ele o que temia nos olhos de Dona Laura, era Ele a quem reverenciava quando Dona Laura murmurava encantamentos com o polegar junto à sua testa, quando designava um santo para cuidar de cada aspecto de sua vida; quando doente um, quando triste outro, quando em perigo ainda outro.

De todos seus encantamentos, minha velha querida, de todas as suas santas bruxices não houve uma, não houve uma que jamais me livrasse do medo último, da fraqueza e da dignidade últimas. Não houve unguento, com suas sacras folhas, não houve benção que me curasse. E porque levei tanto tempo pra entender, minha velha querida, que você não tentava me salvar? Que não tentava salvar sequer a si mesma. Que não há, afinal, salvação possível que não comece por desistir um pouco da idéia de uma benção absoluta.

Eu não sei, meu bem, mas é que tivemos que renunciar tanta coisa pelo caminho... E agora sua imagem me atinge e, embora não me liberte, me traz calma. Seria tolice te supor mais plena que qualquer um de nós, e também tolice a inveja que sentem os intelectuais frustrados ante aquelas pessoas de alma simples, cujos ombros seguem desprovidos do fardo dos conceitos - que para nós, também é luz, essa luz focal, dirigida. Eu não subestimo sua dor. Mas gosto de ver-te, Dona Laura, porque és um mundo que eu nunca habitarei.

Jamais sentira vontade de ler aquele caderno. Já lhe bastava a pele, os olhos, os gestos, a dança sempre tão regular na qual Dona Laura inseria seus ritos, na qual hava feito caber seus amores, suas feridas, e aquele cuidado com o qual tocava com o polegar sua testa.

– Deus te dê luz, e te faça leve o coração.

12 janeiro 2007

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 4: "a ressureição" ou "visões de um novo mundo".

Não sei quanto tempo fiquei naquele estado, fora do ar. Mas me lembro de que de longe fez-se ouvir uma voz, dizendo algo que não pude compreender a princípio, mas que foi se aproximando, cada vez mais, eu ainda afundado na escuridão da incosciência, e aquela voz, cada vez mais próxima, mais próxima, mais alta, muito alta, até retumbar em meus ouvidos e me fazer despertar subitamente, arregalando os olhos de sobresalto. Continuei deitado, como estava, no asfalto; mas próximo a mim havia um rosto conhecido, um sujeito agachado diante de mim com expressão amigável. Andando atrás dele, de um lado pro outro, impaciente, o dono da voz retumbante dizia “mas não é possível, eu bebo e vocês ficam loucos? Não tão vendo que o menino tá apagado aqui? Querem que morra engasgado com o próprio vômito ou o quê? Será possível que ninguém vê uma coisa dessas?”. Não parava de se mover e balançava os braços acima da cabeça, indignado, como se alguma tragédia houvesse acontecido. Apertei os olhos e o reconheci: era Pablo Kossa. E não é que gritasse, entendam. Falava no seu tom de voz habitual, e não havia som que lhe encobrisse.

O conhecido me ajudou a sentar, passou-me um copo plástico com água e disse:
– Barbarizou, hein rapaz?
Nas mãos tinha uma garrafa ainda com dois dedos de catuaba.
– Suponho que você não vai querer ver isso aqui tão cedo, certo? A sua eu ainda consegui salvar, estava quase pela metade, mas você, preferi deixar como estava.
– Eu desmaiei.
– Sim, mas logo que caiu ainda tentou lamber o chão pra não desperdiçar a catuaba que derramou. Felizmente apagou rápido, e achei que faria bem te deixar descansar um tempo. O Pablo é muito desesperado, eu sabia que tu ia ficar bem.
É quando me pergunto o que diabos aquele cara tava fazendo ali. Figura mais que carimbada da cena goianiense, presente em tudo que é show, o que tinha vindo fazer no carnaval de Caldas?

Quando pergunto, ele responde:
– Ué, o mesmo que você e todo o resto. Tava todo mundo meio saturado de Goiânia, certo? Achei que havia sido mesmo uma boa idéia do povo da Fósforo fazer esse carna-rock aqui em Caldas.

Além do mais, tava cansado daquela vida, d enão ter meu direito ao anonimato, de ser um dos poucos naquela comunidade que escreve com pontos e vírgulas (quando quero), e de ter sempre alguém nos shows olhando pra mim e perguntando "será que é ele?, será que é ele”? Eu sabia que não ia dar pra sustentar aquilo por muito tempo, por isso, agora dou o ar de minha graça apenas em aparições muito oportunas. E, você há de reconhecer, aquela comunidade não tem a mesma graça desde que me distanciei.

Eu, ainda mei passado por causa do porre tento juntar uma coisa com a outra, mas não tenho certeza, não é possível, não assim, tento articular uma pergunta:
– Você tá querendo dizer que.. que é o... que é
– Sim, o Pereba, em carne e osso. Não vou dizer “prazer” porque tu ja me conhece. – e cai na risada: – Me diz: o abadá não ficou mal, fala sério.
Firmo os olhos na blusa e leio: “sou rolinchameiro, e daí?”
Ele, acho que notando minha cara de quem não tava entendo nada diz:
– Vamo, levanta. Cê perdeu o show deles mas ainda tá em tempo de ver a atração principal.
Enquanto me levanto sofregamente com seu auxílio, pergunto pelo Vovô, se havia vindo também. – Sim, veio, mas tombou antes da primeira banda. Tá lá atrás do palco.
E quando abro a boca pra articular um “que porra é essa?”, ergo os olhos e vejo, boquiaberto, a cena toda diante de mim.

Fal em cima do trio elétrico dizendo “vamos lá meninos, vamos lá, bebamos com juízo, a noite é de muito rock and roll e queremos agradecer os nosso patrocinadores!”. Me lembro de ter visto aquela simpática vovó no PMW em Palmas e no último Gyn Noise e, mesmo sem entender lhufas do que tá acontecendo, olho pro Pereba e não consigo conter a satisfação. Dou-lhe um abraço enquanto enxugo uma lágrima de alívio em ver todos aqueles rostos conhecidos.

Geórgia passando com um colete de imprensa, com a logo da Mitocôndria e uma câmera na mão; Barbosa esbravejando alguma coisa pro Eduardo Mesquita que, com cara de sujeito boa-praça, lasca nele um abraço do tipo “deixa disso rapá”; Guga com as bochechas rosadas e um moicano absolutamente ridículo, atendendo duas alunas que dizem “nossa professor, como você tem coragem?”; Akio que pára diante de nós, de quimono e faixa na cabeça, dizendo “cadê o Segundo?, é hoje que acerto as contas com ele”, e o Pereba apontando logo adiante, onde Ruy e Segundo desfilam, cada qual com seu par de loiras esculturais, espremidas em mini-shorts de tirar o fôlego; os meninos do Violins sentados num canto enquanto o Pierre murmura “eu tô velho demais pra isso gente, alguém me dá uma aspirina”; Bacural falando pro cara da mesa “se passar do tempo, tu corta o som, é pra cortar o som!”; Carlos Zema, com um cabelo exalando um suave aroma de shampoo e condicionador, autografando CD's prumas gurias histéricas (algum macho resentido grita: ELE É O ANDRÉ MATOS DO CERRADO!!!); Eline, completamente bêbada, jogando botons e CD's da Monstro pra galera; Pedrim, ainda mais bêbado que a Eline, gritando "eu vou ser o novo vocalista do Libertines!!!; Mika sentado numa Harley explicando pra uma morena linda, “veja baby, isso é um metrônomo, funciona pra...” e, de novo, o Pablo andando de um lado pro outro, aflito: “mas será que esse povo vai levar quanto tempo pra entrar no palco? Se levarem todo o tempo que levaram pra voltar à ativa, só daqui dez carnavais! Cadê a porra do João Lucas?!!!”.

Algum palhaço grita “morreu”, mas ele surge em cima do trio elétrico, num shortinho jeans, com uma encharpe rosa cheia de plumas e diz: “meus amores, é com muito prazer que anuncio...”, e quando vejo o Hanna sentando na bateria e o Rodrigo Baiochi ligando o baixo sinto um gelo na espinha, viro pro Pereba e tento balbuciar um “mas, mas, eles...”, ao que ele responde “sim meu caro, eles voltaram...”, e o João continua, “eles, a maior banda da história dessa porra de Estado, eles, a mais fuderosa, a mais desgraçenta, a mais infernal de todas as bandas Goianas de todos os tempos ever and ever: MANDATOOOOORYYYYY SUUUUUIIIICIIIIIIIIIDEEEE!!!”. E quando ouço os primeiros acordes de Shout to The Crowd, já não contenho as lágrimas. Marceleza, do Old Studio, acena pra mim da mesa de som, e eu mal consigo corresponder com um erguer de mão. Estou paralisado. Então, enquanto o Homero berra feito uma jaguatirica empalada (com uma camiseta escrito "Marcão Adrenalina R.I.P."), e Nobre e Leo Bigode pulam abraçados no camarote, eu, claro, sigo meu instinto mais elementar: mal-tratar o pescoço feito um demente. Porque headbanger que é headbanger tem o cérebro solto de tanto bater cabeça. E é quando sinto a mão firme de Tio Geraldo me segurando o braço.

– Quieto menino! Endoidou? Num chega o susto que tu me fez passar lá na pista? Vai arrancar o soro do teu braço, ora essa.

Olho a minha volta e vejo que estou num hospital. Uma enfermeira me fita assustada À minha direita um pastor (reconheço pela Bíblia na mão e pela camiseta do Mortification sob a camisa branca e transparente) e um padre, que tinha na batina um broche do Eterna; à esquerda um hare krishna todo tatuado (esses straight edge são onipresentes) vestindo uma camiseta do Shelter, e uma loirinha linda que, soube depois, era uma das seguidoras do Inri Cristo na cidade. Tio Geraldo, desesperado, provavelmente pensando em como dar à minha mãe a notícia de que seu filho achava-se, sob sua responsabilidade, em coma alcóolico num hospital em Caldas, pediu à enfermeira que trouxesse ao quarto toda essa gente que visita os enfermos pra fazer orações as mais diversas. Ali os credos eram diferentes – na porta do quarto, barrado por um segurança, um sujeito com uma camiseta do Burzum gritava “eu também tenho direito de fazer minhas preces por ele, eu também tenho o direito!” –, mas numa coisa todos concordavam: as orações haviam surtido efeito

Agradeci a todos e pedi que me deixassem a sós com Tio Geraldo. Disse: – Tio, preciso te fazer uma pergunta, e é muito importante.
– Diga menino. Mas tu não pode falar muito, tem que descansar, a médica disse que...
– Tio, eu preciso saber se joguei a mãozinha pro alto.
– Como?
E eu, apesar da palidez ocasionada pelo porre, sinti-me enrrubescer, mas repiti:
Preciso saber se joguei a mãozinha pro alto,lá na pista. Se dancei com a mãozinha pra cima, sabe? Como todo mundo tava fazendo lá.
– E tu não lembra de nada?
– Nada.
– Então escora aí que vou te contar tudo, hehehehehe. É uma longa história, e vamos ter que falar baixo, porque se a médica me pega proseando contigo me passa um pito dos quinhentos, porque tu devia tá dormindo. E ele começa a contar.

Até hoje custo crer que passei por uma dessas e saí ileso. De qualquer modo, Tio Geraldo, quando nos visita traz consigo um tabuleiro de damas que faz a alegria de nossas noites. De carnaval, nunca mais quis saber.

Se eu joguei as mãozinhas pro alto?
Ora essa, isso lá é pergunta que se faça? Por acaso te pergunto que músicas você ouve quando ninguém tá por perto?
É cada figura inconveniente que eu vou te contar um negócio viu...

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 3: a crucificação

Virei num gole um copo de Hi-Fi que havia preparado no quarto e senti o corpo começando a ficar mais leve. Embaixo do abadá duas camisetas pra dar sorte. Uma do Ratos, que o Guga me deu antes da viagem, "pra dar sorte", segundo ele, e outra da Hocus Pocus, claro. Se existe isso de “universo astral”,”energias espirituais” ou o escambau, uma coisa deve ser certa: um roqueiro sob as bençãos do Junim tá melhor que um roqueiro por conta própria. Segui.Quando estávamos a cerca de dez metros da entrada da zona do trio ainda pensei que podia ter ligado pro Beto. Ele é culto, sensível, iteligente e, principalmente: é comprometido e pop star ao mesmo tempo. A carreira no Violins lhe conferiu a habilidade do raciocínio veloz. Sempre tem que pensar rápido pra escapar do assédio das fans e deixar a Dani orgulhosa (com razão, diga-se) do homem sério que possui. Mas eu já estava rendido. Além do quê, o Beto é isso tudo que eu falei mas, como todo mundo sabe, também é uma bicha. No final ia acabar dizendo preu ouvir meus sentimentos e seguir meu coração, ou algo assim. Ou diria que num Estado liberal eu sou um indivíduo autônomo e capaz de gerir meu destino dentro das normas instituídas por lei, o que não me ajudaria muito. Enfim, eu era uma ovelha – ainda que negra – sendo levada pro matadouro.

Então pensei: era melhor acabar com aquilo logo. Tomei meu tio pelo braço e acelerei o passo. Queria cruzar logo aquela fronteira, me atirar logo naquele inferno, como se isso pudesse fazer o tempo passar mais rápido, como se pudesse ameninzar o efeito devastador dos “vamo lá, eu quero ouvir”, que já chegavam impiedosos aos meus ouvidos. Fechei os olhos, acelerei ainda mais o passo e, enquanto arrastava meu tio pelo braço ele dizia “eeeeeeta fiote! Calma lá que as muié não vão fugi não, nem o mé! Êta energia!”. E tudo que eu queria era energia. A energia de um raio certeiro sobre a cabine daquele trio elétrico ou, pelo menos, na minha cabeça. Sinto o meu corpo se chocar ao dos foliões, protego-me com o braço diante do rosto, meu tio grita coisas ininteligíveis atrás de mim em meio a risadas enquanto o puxo e avanço, avanço, avanço... até me chocar com algo. Sinto que diante de mim há uma superfície, na qual me apoio ofegante antes de abrir os olhos. E quando os abro, lá esta ela. Linda! Resplandecente! Com seus traços perfeitos, suas curvas exatas, e todas aquelas marquinhas que eu poderia reconhecer com a ponta dos dedos mesmo na mais plena escuridão. A CATUABA! O balcão era de uma dessas barracas que vendem bebida e, por Deus, ELES VENDIAM CATUABA!Arranquei afoito uma nota amassada de dois reais do bolso, pedi uma sem sequer saber quanto custava, paguei e virei as costas sem saber se havia sobrado troco ou se tinha ficado devendo algo. Tio Geraldo dançava animado, logo a minha frente, e toda menina que passava ele soltava um “ô saúde!” ou um “ê fartura!”. Não dizia gostosa nem qualquer obscenidade. Era preciso saber elogiar as meninas com respeito, era o que pensava. E mais uma vez eu me lembrei do Ruy. Decerto concordaria, claro.Virei metade da catuaba de uma vez, respirei um instante e matei a outra metade. Pronto. Somando a dose de vodka com suco de laranja tomada lá no quarto e a catuaba virada no gargalo, o leitor deve supor que eu já me encontrava consideravelmente tonto. Ou “tontinho” como dirão outros dotados de maior tolerância alcóolica. O fato é que, à essa altura, o leitor também já deve ter imaginado qual era o plano: ora, se ali vendia catuaba eu estava salvo, havia uma saída, o sofrimento teria fim! Eu podia simplesmente APAGAR!O detalhe é: se você conhece catuaba sabe que não é tão fácil apagar com aquilo. Porque embora seja uma bebida forte, seus componentes são estimulantes, deixam o metabolismo a mil, e te impedem de dormir. O resultado é que o porre de catuaba é um inferno por que você não consegue apagar, mas à certa altura, também não consegue mais andar, ou falar, ou , sequer, raciocinar direito. Daí fica no chão feito uma ilustração da Divina Comédida de Dante, tentando agarras as pernas de quem passa, grunhindo expressões de socooro ou impropérios ininteligíveis (essa sacada é do Pierre, do Violins – querido, receba essa homenagem como um pedido de desculpas tardio pelo vômino na sala do seu AP, e o estenda à Bianca, ok?). Na hora eu, claro, não pensei nisso. Não era só uma questão de ficar bêbado. Tinha que ser catuaba! Era mais que uma bebida, era um ser ali comigo, entendem? Com ela eu não estava só! Ela me entendia. Rumei então, com passos rápidos, para a barraca de bebidas quando aconteceu, pela primeira vez, o que eu tanto temia: com zilhões de watts de potência o primeiro “TIRA O PÉÉÉÉ DO CHÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO” me pegou de costas. Uma pancada bem no meio da espinha.

Quem tivesse visto suporia que eu havia tomado um tiro. Tio Geraldo, felizmente, achava-se entretido com duas moças. Por um instante desacelerei o passo, olhei para os lados meio atônito, os lábios trêmulos, rodei uma, talvez duaz vezes em torno do meu próprio eixo, a visão nublada. Abaixei, apoiei-me sobre os joelhos ofegante e esperei, não sei quanto tempo. Talvez dois ou três minutos. Não sei como, consegui chegar por fim à barraca de bebidas.

– Cerveja?
– Outra Catuaba, por favor.

Enquanto me afastava da barraca sorvendo aquele líquido furta-cor, dessa vez em goles lentos, de acordo com o estado de choque em que me achava, pensei na saída que onze entre dez machos encontrariam para a solução. As mulheres, claro. Só havia um jeito de redimir essa situação. Pegando o maior número de chicleteiras possível! E parti para o ataque. Mas era tarde demais. A catuaba começava a agir e a comunicação estava se tornando uma missão delicada pra mim. Não que nesses ambientes você tenha que se comunicar bem. Normalmente não dá pra escutar muito o que as pessoas falam, e quando você escuta preferia ser surdo. O problema é que quando fico muito bêbado começo a falar cuspindo. Me aproximei de duas meninas, que se mostraram até gentis. Estavam abundantemente maquiadas – note: só uma chicleteira é capaz de rivalizar com uma indie ou uma gótica no quesito maquiagem, e eu não arriscaria dizer quem sairia vencedora.

Elas brilhavam, mesmo, tinham sombras verdes nos ólhos e seu lábios pareciam os de quem acaba de comer um pastel de rodoviária, cintilavam por causa do gloss (thanks Vivis, pelo auxílio na nomeclatura rs). Era visível que tentavam dar continuidade à “conversa”, mas seus olhos estavam entre-abertos, pra se proteger das partículas de saliva que eu lançava ao ar. E eu falava, falava, falava. Não tenho a mais vaga lembrança do que dizia, mas acho que falava pra que elas não tivesse a oportunidade de abrir a boca. Enfim, se afastaram sorrindo sem-graça, e eu sequer pude ter a sensação de perda. Era um arruinado, havia descido no mais fundo de mim, estava atolado num charco de indignidade. Lembrei das camisetas que trazia sob o abadá e pus-me a passar a mão sobre elas ansiosamnete, os olhos fechados, voltados para o céu. A imagem de um demente, que não se lembrava de ser tão resistente à catuaba e que só queria o milagre da inconsciência. Segui de olhos meio fechados o caminho que já havia decorado, rumo à barraca de bebidas, e foi quando eu voltava de lá, com a aquela que, eu ainda não sabia, seria a última catuaba da noite, que a temeridade me acometeu pela segunda vez. Como uma lança, como uma paulada, como mil flechas cravadas no meu peito (e o volume parecia cada vez mais alto!) eu recebi o tiro de misericórdia: SAAAAAAIIIIIII DO CHÃO CAAAAAALLLLLLDAAAAAAAS! E enquanto o povo vibrava ensandecido eu parei, cambaleando feito um animal ferido, ergui sofregamente os braços ao céu como o Cristo na cruz (caro leitor, câmera em tomada superior, por favor) e soltei um brado de desespero, um urro que foi tragado pelo barulho ensurdecedor da multião que respondia em massa ao apelo do cantor. Um relâmpago cortou o céu, fez-se um segundo de claridade sobre o fundo escuro dos meus olhos que já nada enxergavam, e a última imagem que consigo ter é a da catuaba tombada no asfalto, ao lado do meu rosto. Consegui ainda tocar com a língua o fio escuro daquele líquido que escorria em minha direção. Senti na boca a aspereza do asfalato. E apaguei.

(continua)

11 janeiro 2007

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 2: rumo ao calvário.

Já na estrada passamos por um outdoor imenso que dizia Nerildo e Nerivan, SUCESSO EM TODO BRASIL. E eu penso, que estranho, ninguém nunca viu esses caras, num show, na tv, no rádio, um fã, nada! Você já viu um fã de Nerildo e Nerivan? Pois é, mas o outdoor diz que eles fazem sucesso em todo o Brasil. Estranho.

Paramos pra abastecer e tive um nova idéia. Corro pro orelhão ao lado da loja de conveniência enquanto o frentista enche o tanque e meu tio compra um punhado de long necks.
– Alô, Mika?
– Putz, bom cê ligar! Tenho que te contar uma coisa.
– Beleza cara, mas vai ter que ficar pra depois, tô precisando de um favor seu e tenho pouco tempo pra falar.
– Não, cê tem que saber, é sobre o Luciano. Eu fiquei sabendo que...
– Ah não Mika, esse papo de zoofilia de novo não. Eu sei, é engraçado, mas agora não dá. Tô precisando da sua ajuda, me escuta.
– Mas é que...
– Mika, eu sei que tu conhece um monte de músicos profisisonais. Preciso que você entre em contato com alguém da organização de um bloco de carnaval de Caldas. Você deve conhecer alguém. Tem que ser uma pessoa que saiba dos detalhes, entende? Porque meu tio vai querer se certificar.
E, pela primeira vez, parece que ele tá me ouvindo.
– Seu tio?
– Sim, é uma longa história. Preciso que você faça alguém da organização desse bloco ligar pra ele dizendo que aconteceu alguma coisa, sei lá, inventa, mas que o bloco não vai poder entrar na festa, pifou, morreu alguém, não sei, pensaê.
Sim, eu tava pirando. Claro que meu tio ia querer ser ressarcido e que ia descobrir a coisa toda. Mas na hora não pensei nisso. E nem tive tempo de cair em mim, porque, do outro lado da linha, o Mika já se acabava de rir.
– Então quer dizer que cê tá indo pro carnaval de Caldas? Hhahahahahahaha. Eu não acredito. E o Metallica que é poser, né? Hahahahahahahaha.
– Mika, é serio. Eu já tô na estrada e preciso desligar. Dá pra fazer isso pra mim?

Com uma voz ainda meio risonha, ele diz: – Nao dá cara, não conheço ninguém da organização. Mas vai ser bom pra você ver alguns músicos profissionais, muito competentes por sinal, melhores que essas porcarias HC que você escuta! – E dá-lhe o Mika se desmanchando de rir novamente. Ele nunca conseguiu entender como eu podia gostar de Dream Theater e D.R.I. ou Madball ao mesmo tempo. E não é que eu tivesse problemas com isso mas, ali, naquela hora, enquanto via meu tio acomodar long necks na caixa de isopor no banco de trás, enquanto me sentia acuado feito um animal em fuga, fui acometido de um desespero que assumiu a forma da violência. Eu precisava descarregar em alguém. E quem tava ali, do outro lado da linha, era o Mika, portanto, segurou o rojão:

– Quer saber, Mika? Vai pro inferno, cara! FUI EU QUEM POSTOU AQUELE POST ANÔNIMO DIZENDO QUE VOCÊ USA PERUCA!
Era mentira, claro. Eu sabia da história, mas nunca tinha comentado com niguém. Mas estava puto, muito puto, possesso mesmo, e não ia parar. Segui mentindo só pra me vingar, não exatamente dele, mas da situação absurda na qual tinha entrado.
– Eu sei que, nos anos 80, quando você descobriu o Van Halen, fez uma química sinistra no cabelo pra ficar parecendo o Dave Lee Roth e amanheceu careca no dia seguinte. E mais: sei que tu é o Ranulfo também! (fake da comunidade Goiânia Rock City no orkut) – Mas isso até minha mãe sabia.
Desligo o telefone sabendo que me arrependeria do que disse, que teria que pedir desculpas a ele depois. Mas naquela hora era o que eu precisava, por isso, entro no carro mais aliviado e abro a longe neck que Tio Geraldo me passa.
– Vi pelos seus gestos que a conversa tava tensa.
Eu guardo silêncio e ele me dá a deixa de que preciso:
– Mulher, né? Mulher é fogo.
– É... é fogo.
– Mas vâmo que vâmo que tem muita farra esperando a gente. Tu não vai ficar nessa tristeza não porque o sistema hoje é bruto!

Meu tio passa a mão nos meus cabelos pra, logo em seguida, fazer o sinal de “metaaaal” com a mão direita. Que figura, penso eu, que figura.
Chegando no hotel jogamos as coisas sobre a cama e meu tio diz: deixa tudo aí, pega só sua sunga e bora tomar uma cerveja na piscina de água quente!
Sunga? Tento explicar a ele porque não uso sunga, de um modo que não denigra minha imagem de homem viril. Mas ele não percebe meu constrangimento e arremata: – Ah, mas quando eu era da tua idade também era seco feito um palito, olha só no que deu! – E bate na barriga farta, todo orgulhoso.

Pois bem, cervejas em punho entramos na piscina morna. Mas eu, já completamente tomado pela paranóia, começando a perder minha sanidade, não consegui me sentir à vontade porque tinha a impressão de que todo mundo havia mijado na água. Então, já que tinha entregue meu destino aos céus – ou ao inferno – achei que o melhor era tirar sarro da cara do capeta. Pedi pro meu tio contar uma piada. Pra quê. Se sóbrio já fazia um estrago enorme, bêbado ficou impossível. E dá-lhe nós dois rindo feito dementes, chamando a atenção de todo mundo, sem darmos a mínima importância. No fim da tarde eu, que já começava a sentir as cólicas do riso, pedi clemência quando ele contou “a do pintinho doido”.
– Sabe a do pintinho doido?
Eu ainda enxugando os olhos da última: – Não, não sei.
Ele: – Miaaaaaauuuuuuuu.

Foi o meu fim. Contando assim você pode até não achar graça. Mas eu sofria de tanto rir. Porra, tem coisa mais lunática que um pintinho que mia? Tinha que ter pirado mesmo. E, pelo jeito, não só ele.

Sugeri que comêssemos alguma coisa e dormíssimeos um pouco, “pra nos preparar pro show da noite”. É claro que não vou mencionar o nome da banda que iria tocar. Já chega a humilhação que foi até aqui. Basta vocês saberem – e isso não é difícil de deduzir –
que era uma banda de axé.

Mas eu tinha um plano desde a metade da tarde. A idéia era: embebedar meu tio –
e eu junto com ele, claro – de forma que, deitando pra um “cochilo”, por volta das oito, ele só acordasse no dia seguinte. Com essa esperança, adormeci, já meio bêbado e com o estômago forrado por churrasquinhos que havíamos comido.

Por volta das onze acordo com uma luz verde na minha cara e penso: pronto, acabou; o capeta me livrou, em nome dos meus vários anos de devoção ao Slayer, ao Immortal e ao Mayhen, e me levou direto pro inferno, sem precisar fazer escala nos trio-elétricos. Agora vamos ser eu e o Dimebag Darrel tomando uísque com umas diabinhas gostosas por toda a eternidade ao som de Walk (ou de Cowboys from Hell, pra não contrariar o clichê) – e o Ruy acrescentaria: sapecando um nervo e dando uns pega nas demônia!

Mas não era o capeta, e sim Tio Geraldo, com uma daquelas lanterninhas coloridas que há muito tempo se usava em raves - era pedir demais que estivesse atualizado, né? Quando tira a lanterna da minha cara e acende a luz do quarto posso vê-lo de pé, no centro do quarto e – veja bem, você não precisa continuar lendo isso aqui, eu até agradeceria se parasse, ok? –, vocês devem imaginar, estava por assim dizer, digamos... enfim, estava de abadá. Jogou na minha cara meu abadá e minha lanterna. Liguei e fiquei olhando hipnotizado pra luz vermelha.

– Eu de verde, você de vermelho! É o fluminense na night!

Havia me esquecido. Tio Geraldo é tricolor. Na infância tínhamos rusgas homéricas discutindo a paixão pelos times. (Sou vascaíno com orgulho!) E eu nunca pensei que um dia fosse achar seu amor pelo Fluminense o melhor de seus defeitos. Preferiria mil vezes sentar do seu lado, num Maracanã lotado, e ficar mudo de tanto gritar “vai, tricolor!”, do que encarar o destino que me esperava. Mas não era mais hora de fugir. Por um instante pensei em “passar mal”, simular um desmaio, diarréia, crise de epilepsia – teria soado suspeito, não há casos na família –, qualquer coisa. Mas os olhos vivazes de Tio Geraldo, sua expectativa, e a certeza que parecia ter de que estava me proporcionando os dias mais divertidos da minha vida, me impediram. Pensei que era justo assim. Ele me dava suas piadas, que eu não encontraria em lugar nenhum do mundo e eu, como forma de gratidão (mas, por Deus, não haveria outro jeito de demonstrar gratidão?), vestia o abadá. E foi assim. Acreditem, não é fácil confessar isso desse modo, mas a verdade é que... eu vesti o abadá. É isso aí, vesti mesmo. Você pode se acabar de rir aí enquanto lê isso, mas eu não tinha alternativa. Vesti e pronto. E pra alimentar a diversão cruel de vocês eu conto: era rosa. Rosa fluorescente. Nas costas uma marca de cerveja e, na frente, o nome do bloco, que eu não contaria aqui “nem que vocês me amarrassem à uma ogiva nuclear e me lançassem sobre uma ilha japonesa”.

Fechei a porta do quarto como quem fecha atrás de si a última porta da esperança (passar a noite assistindo antigos programas do Sílvio seria a glória) e, de longe, já pude ouvir o fusuê do trio-elétrico. Então olhei pro céu, era noite sem nuvens, um negrume límpido e abundante pairava no céu sobre minha cabeça quando, de cabeça baixa, como que numa prece, fiz um pacto comigo mesmo: “Ok, você vestiu um abadá. Você tirou foto com seu tio, ambos fazendo ‘metal’ com os dedos, e agora tem nas mãos uma lanterna de luz vermelha – meu Deus, pra quê?. Mas seja honesto consigo mesmo, não se engane, se ‘jogar a mãozinha pro alto’, vai ter que se matar”. Eu sabia que não conseguiria olhar meu rosto no espelho no dia seguinte se fizesse uma coisa dessas. Em nome da flying-v de Randy Roads, em nome de Ozzy comendo morcegos e do Kiss esmagando pintinhos, em nome do vocal furioso do Phil Anselmo, da bateria vulcânica do Dave Lombardo e da demência do Mike Patton; em nome do baixo cavalgado do Steve Harris e do alarme anti-incêndio que era a voz do Bruce Dickinson, por favor: jogar a mãozinha pro alto, NÃO! Prometido isso a mim mesmo, acendi minha lanterninha e segui Tio Geraldo, que insistia: íamos “tocar o terror”. Poucos passos no separavam do trio elétrico e o fluxo de pessoas era intenso. Todas animadíssimas, claro. Você deve supor, era o início do fim.

(continua...)
Obrigado Daniel, pela revisão.

As aventuras e desventuras do roqueiro-da-triste-figura numa micareta inesperada - Pt 1: o início da queda.

Férias, período sem shows, sem nada pra fazer em Goiânia, e eu digo que faria qualquer coisa pra sair daquela rotina monótona. Não sabia a besteira que estava dizendo. No fim de janeiro recebo com certa surpresa a notícia: “meu filho, seu tio vem passar uns dias aqui em casa”. Peraê, que tio? “O Geraldo", diz ela. O Tio Geraldo? Aquele que eu vi pela última vez há uns nove anos atrás, quando ele veio a Goiânia comprar não sei o quê pras lojas dele? “Uhum, ele mesmo”. Embegeci.
Bem, vocês precisam saber, o tio Geraldo sempre foi o mais distante dos três irmãos da minha mãe. Na infância me lembro dele com a barba abundante me pegando no colo e contando piadas que, na época, eu, com meus cinco ou seis anos, já achava sem-graça. Acontece que eu era novo demais pra entender aquelas piadas. O tempo passou e as coisas mudaram um pouco: pouco tempo depois ele se mudou pro interior de Rondônia e nos visitou após uns quatro anos. Eu, por volta dos onze, entendi perfeitamente cada uma de suas piadas, e não as achei exatamente sem-graça. Era mais que isso. Eram simplesmente terríveis! Inacreditavelmente ruins! As piores de todos os tempos! A bem da verdade, em certo sentido, nem eram exatamente piadas. Não havia as escutado de ninguém. Ele as inventava todas! Querendo, poderia se dizer que era um procedimento literário.
Eu, bem, eu me acabava de rir. Mas ria de passar mal, de encher os olhos d’água, de olhar pra minha mãe, que fingia assistir a novela – não se conseguia escutar nada da TV, é claro – com um olhar de quem pede misericórdia. Eu estava sendo massacrado pelo humor non-sense de Tio Geraldo, e não conseguia parar de rir. Não pelas piadas em si, claro. Mas por ter sido pego de surpresa pela imagem de um sujeito que conta as piores piadas que você já ouviu na vida, e começa a engasgar com o próprio riso antes mesmo que elas tenham chegado ao final. E nós perdíamos (perdíamos?) horas e horas nessa brincadeira. Ele bebendo e contando piadas, eu rindo até precisar do auxílio da minha mãe que, convencida de que aquilo não devia estar fazendo bem à minha saúde, me arrastava pro quarto com um discreto “tá na hora de dormir, meu filho”. E eu ia, ainda degustando os últimos fiapos de risada, com uma mão na barriga que doía, castigada pelo efeito cômico da noite, e a outra acenando pro tio que dizia “boa-noite” e piscava pra mim como quem diz “amanhã tem mais”. Havia um clima bom, de satisfação, em casa naqueles dias. E foi a última vez que vi o Tio Geraldo, até aquele carnaval. Porque, vocês devem se lembrar, o Tio Geraldo tava chegando pra passar uns dias.
E chegou na manhã do dia primeiro de fevereiro, com uma mala modesta e uma roupa amarrotada, como se não fosse o endinheirado que era. Tio Geraldo havia tomado uns investimentos que tinha guardado e comprou a franquia de uma rede de lojas de eletro-eletrônicos, instalando-se no interior de Rondônia. E por uma dessas situações que ninguém sabe explicar, o negócio deu certo e parece que, desde então, Tio Geraldo vivia com certa grana. Mas não havia mudado nada, percebi logo que cruzou a porta da sala. Cumprimentou minha mãe, minha avó, fazendo um barulho dos quinhentos e, por último, cumprimentou a mim. Me ergueu do chão como se eu ainda tivesse os onze ou doze anos da última vez em que nos vimos. Mas eu havia acabado de cruzar a casa dos vinte.
O dia estava ótimo. Aquele tipo de alegria fácil que os sentimentos familiares de uma família ligada por laços sinceros são capazes de despertar. Quando, de súbito, Tio Geraldo solta a notícia, como se jogasse uma cascavel em cima da mesa. Mas não a cobra inteira de uma vez: primeiro a cabeça, depois o corpo e, por fim, a calda. Parecia balançar o chocalho a um centímetro do meu nariz.
– Fico até o fim do mês, se não for incômodo a essa família fabulosa! Mas a semana de carnaval vou passar em Caldas Novas.
E eu teria me limitado a um pensamento tipo “cada doido com sua mania”, não fosse o detalhe de ele ter acrescentado, passando a mão sobre minha cabeça amistosamente e me descabelando: – Vamos eu e esse meu sobrinho, porque temos muitas risadas atrasadas para por em dia!
Minha mãe teve uma daquelas engasgadas homéricas e se retirou subitamente da mesa, enquanto Tio Geraldo me fitava com um sorrisão no meio daquela mata negra que tinha no rosto, como que esperando minha expressão de contentamento. Então acrescentou: – Não vai ter que pagar nada, já comprei os abadás! Não é uma quente, filhote? Há, hã? Quentura! – E me dava tapas no ombro enquanto, lá de dentro, eu ouvia a gargalhada abafada de minha mãe, que havia se trancado no banheiro para rir de minha desgraça. Ela sabia que eu estava numa enrrascada.
Primeiro veio o pânico, os olhos de meu tio sobre mim, aguardando minha reação, e eu com um puta branco na cabeça, sem ter idéia do que dizer, até que disparei a frase mais inacreditável que já proferi – e uma das quais mais me arrependi até hoje: Poxa tio, que legal! – E dá-lhe um sorriso amarelo na cara e Tio Geraldo me espremendo num abraço de quebrar costelas. A barba me roçando o rosto como que num prenúncio de que o pior ainda estava por vir. Claro que estava.
Depois veio a reflexão sistemática. Eu andando de um lado pro outro no quarto, olhando pros meus poster do Pantera, do AC/DC, do Nevermore, e suplicando. Vamos Phil, eu comprei todos os seus discos originais, não me deixe na mão agora, sim? O que eu faço. Nos discos do Pantera o desgraçado urra feito um animal mas, naquela hora, no início da minha Via Crucix – e, meu Deus, eu seria crucificado de abadá? – não dizia nem uma palavrinha sequer.
Por fim veio a fase da calma. Aquela calma que só os desesperados conseguem ter – os que vêem sua casa pegando fogo, os que recebem uma sentença de morte, os que vêem o time do coração levar um gol de frango, aos quarenta e quatro do segundo tempo, quando precisava de um empate pra ir pra prorrogação. Eu, que nada podia fazer, aceitei meu destino tentando dissimular alguma dignidade e sentei na cama após ligar o som no talo. Enquanto o Max urrava “waaaaaar for territoooooory” no meu ouvido, eu adquiria, cada vez com mais clareza, a certeza de que estava condenado: contrariar Tio Geraldo estava fora de cogitação.
Minha mãe era cruel. Uma vez pegou uma camiseta minha, dobrou as mangas e encostou-a em meu peito, como fazem as costureiras para ter certeza das medidas da peça. Disse: – Vai ficar uma graça de abadá! – E ia pra cozinha dando fartas gargalhadas. Você sabe, por mais que sua banda favorita seja o Morbid Angel, ou até o Deicide, não se pode mandar a mãe tomar no cú, certo? Eu me resignava. Doutra vez atendeu um telefonema enquanto eu estava no banho. Adorava os meus amigos. Se alguém me visitava uma vez ela te servia alguma coisa, pedia desculpas pela modéstia do lanche e não se importava com os coturnos, com os cabelos ressecados, ou com as camisetas pretas, esbranquiçadas de tão velhas. E se vc ligasse ela perguntaria pela saúde, pela família e diria Deus te abençoe antes de me passar o telefone. Uma graça, ela, você pode pensar, e teria certa razão. Mas nem tanto. Também era de um sadismo que deixaria o próprio Sade estarrecido.
Naquele dia era Larissa no telefone. Menina linda que eu havia conhecido num show no DCE-UFG. Do banheiro eu ouvi minha mãe gritar: – Meu filho, é a Larissa. Quer saber onde você vai passar o carnaval. Digo pra ela ligar depois ou falo que você vai com o seu tio pra... - E antes dela terminar a frase eu estava arrancando o telefone de suas mãos, de toalha e todo ensaboado, deixando um rasto de água atrás de mim. E dá-lhe minha mãe rindo casa adentro... Uma víbora.
Foi nesse mesmo dia que tive meu último ímpeto de salvação, minha última tentativa de fuga. O Segundo, claro! Tinha que ligar pro Segundo! Ele era a única pessoa capaz de entender a nós dois, a mim e ao Tio Geraldo, ao mesmo tempo! Ele gosta de rock, como eu, e tem um humor completamente non-sense, como meu tio! Tinha que ter uma solução.
– Alô, Segundo? Cara, tô ligando porque tô num apuro... Não, não, não é nada grave. Quer dizer, é sim, mas não é problema com grana nem com mulher. Sim, minha mãe também tá boa, Segundo, me escuta. O problema é meu tio, meu Tio Geraldo, você não conhece ele. Chegou pra passar uns dias com a gente aqui e quer que eu vá passar o carnaval com ele, com tudo por conta.
O Segundo, como era de se esperar: – Porra, e esse é o teu problema? Eu levei uma ré monstra num show da Two Beers semana passada e vou ter que passar o carnaval tomando catuaba com o Junim no fundo da Hocus Pocus, porque ninguém nessa cidade dá a mínima pro underground! Deixa eu ir no teu lugar então!
– Segundo, cê não tá entendendo. O problema é o lugar onde ele quer me levar. E eu não posso contrariá-lo! É uma pessoa querida, tá crente que tá me agradando. Pra você ter uma idéia, me perguntou se eu não achava o esquema “quentura”, Segundo. Quentura, pode?
Ele me pergunta qual seria o lugar. Eu, respiro fundo e digo.
– Caldas Novas.
E escuto quando ele cai na gargalhada. Ele tenta dizer alguma coisa, mas não consegue, parece estar perdendo o fôlego de tanto rir. Tenta articular alguma palavra mas só sai um “ai ai ai”. E eu, como um homem que afunda na própria miséira, acrescento, antes de desligar o telefone: e de abadá. Clique.
O Segundo tava tentando não morrer de rir naquele exato momento, portanto, não podia me ajudar. Definitivamente, eu tava fodido.
Passei os dias seguintes dispensando convites de amigos. Encontrei uma mesma desculpa pra dar a todos, pra não soar iverossímel: iria passar o carnaval na fazenda de um primo chegado que sofrera um acidente e não poderia ir pra farra nenhuma até se recuperar. Os primos e os amigos mais próximos haviam decidido ir pra fazenda da mãe do cara pra dar uma força, não deixar ele morrendo de tédio sozinho, e bebericar uma cerveja. Pronto. Bastante convincente Limados os malas que tinha coragem de dizer “então eu vou também” – o povo sempre querendo beber de graça – agora era aguardar o fim chegar.
Na véspera do primeiro dia de carnaval, enquanto arrumava minha mala, meu tio bateu à porta e abriu-a um pouco, apenas o bastante para aparecer seu rosto grande, o sorriso abundante: – Estamos prontos marinheiro? Prontos para navegar no mar da diversão, hã?
Eu repeti comigo mesmo pron-tos-pa-ra-na-ve-gar-no-mar-da-di-ver-são. E acrescentei num sussuro: socorro. Mas não havia ninguém me ouvindo, então...
– Claro tio! Vamos bombar!
Meu Deus, o que tava acontecendo comigo? Alguém me dá uma catuaba?
Manhã do dia seguinte, jogo a mala no bagageiro e entro no carro. Ponho os óculos escuros pra que minha mãe não veja minha cara de cachorro-que-caiu-da-mudança. Mas ela é impiedosa. Enquanto meu tio entra no carro, após se despedir de minha vó, ela dá a volta e toma meu rosto entre as mãos através da janela e diz: – Divirta-se meu bem, tome muita água. Lembre-se, dançar sem beber água pode te desidratar, sim? – E meu tio arremata: pode deixar, o garoto tá vendendo saúde, pra ele e pro mulheril todo lá de Caldas! – E eu me ponho a pensar naquelas meninas com três quilos de maquiagem na cara e a blusinha do abadá amarrada pouco acima do umbigo. Devidamente assediadas por moçoilos de braços fartos e óculos escuros sobre os cabelos cheios de gel. Definitivamente, eu precisava de uma catuaba.
Quando dobramos a primeira esquina meu tio diz: – Ontem comprei um CD de rock pra ouvirmos na estrada. – E antes que o disco comece a tocar, consigo ler o nome do ábum. É Música para Acampamento, do Legião. Tem horas na vida, meu amigo, que o que resta é abraçar o capeta. Ele me passa um cigarro, com ar de quem faz a maior das travessuras, e levanta o punho com o indicador e o dedo mínimo erguidos. Sim, meu tio é metal, morram de inveja – e que venha o abadá.
(continua...)
Thanks ao Homero pela ajuda na revisão ortográfica.