29 março 2006

Sobre Deus e Sigur Rós

Ouvir Sigur Rós pode causar a impressão de que há alguma "força superior" por trás do universo.
Mas basta aguçar um pouco os ouvidos e você conclui: é só Beleza mesmo.

De qualquer forma, agora quando me perguntam se creio em Deus respondo: "só quando ouço Sigur Rós". Dei pra fazê-lo com o tornozelo amarrado ao pé da cama, pra não correr o risco de sair voando pela janela, que nem aqueles balões de parque de diversões.

Já imaginaram, eu subindo, subindo, passando por um anjo, dois, até dar de cara com o Todo-Poderoso? Feito o velinho Enoque. E o constrangimento? Eu tendo que explicar que não foi por mal que deixei de acreditar nele e ele, todo terno, tentando me deixar à vontade: "não faz mal, acontece". É que faz muito tempo que a gente não se fala, ficaríamos sem saber onde pôr as mãos, um desconcerto total.

Eu e Deus, quem diria. E tudo por causa de uma música do Sigur Rós.

Porque sempre que escuto acabo pensando: "eles o viram, têm de ter visto..." Aliás, não deve ser mal, esbarrar com Deus numa música qualquer. Há quem o encontre nos lugares mais inesperados. Mas pra mim, que não tenho fé, Deus é uma saudade distante. E música.

27 março 2006

Ontem eu escrevi um conto, ia postar aqui. Mas não vai dar. É que isso aqui não serve apenas para o exercício terapêutico de me desnudar. Serve também para me esconder. Creio que o mesmo vale para cada página escrita desde sempre. Às vezes é triste pensar que vivemos numa tensão entre dar-se e recolher-se, ocultar-se e anunciar-se. Mas é assim. Nos doamos pra nos proteger da solidão, que enrrudece a alma, que a torna árida e sombria. E nos retraímos pra nos proteger do mundo. O fato, e isso é inegociável, é que estamos sempre em fuga, como hamsters. E nesse caminho de pavor volta e meia somos supreendidos pela beleza e pela fúria, e contruímos a vida.

Sobre o conto cheguei a pensar que devia ser lido ao som de Sigur Rós, mas isso é uma besteira. Cada um sabe como constrói, dentro de si, o vínculo entre os sons e as palavras, assim como entre essas e as coisas. Mas é que Sigur Rós nunca me cansa, nunca deixa de me comover. Então as vezes me convenço de que se existe no mundo um som que seja paz e repouso e beleza diante de uma vida tão desnudada quanto possível e para além das palavras, isso seria Sigur Rós. Não seria exagero dizer, portanto, que essa banda faz minha vida melhor. É uma chuva abençoada sobre mim. Ela vem e, quando vai, meu coração é terra fértil. Não, não seria exagero dizer...

No mais, tenho lido um bocado sobre a ditadura e tenho frequentado arquivos em busca de material sobre o período do governo Mauro Borges. O documentário vai ficar bonitão.

E pra não dizer que os deixei sem literatura hoje, aqui vai um trecho de Cortazar, que há tempos penso em postar aqui:

"O médico acaba de nos tranquilizar. Sua voz grave e cordial precede os remédios, cuja receita ele escreve agora, sentado à mesa. De vez em quando levanta a cabeça e sorri, animando-nos. Não é nada demais e daqui a uma semana estaremos passando bem. Nos refestelamos no sofá, felizes, e olhamos distraidamente em volta. De repente, na penumbra debaixo da mesa, vemos as pernas do médico. Ele arregaçou as calças até as coxas e veste meias de mulher".

Julio Cortazar, "História de Cronópios e Famas", ao som de Sigur Rós, "Sorglega", do álbum "Takk"

16 março 2006

Um conto antigo

Eu já escrevi com mais frequência. Mas cresci um pouco e me tornei mais seletivo, daí escrevo menos. Mas às vezes acho um texto antigo que me arranca um sorriso cúmplice. O conto que segue abaixo foi escrito num dia de reveillon há mais de 3 anos. Está cheio de coisas que eliminei da minha escrita, principalmente aquele olhar excessivamente melancólico, imbuído de um pessimismo juvenil que se mostrou, com o passar do tempo, um elemento suicida e, em geral, uma manifestação de afetação e mau-gosto. Mas é um texto honesto e, creio eu, bem escrito. Então achei que valia a pena. Taí, sem título, como a maioria dos meus textos. Chame-o como quiserem.


Está certo, está certo... Talvez você tenha mesmo razão e esta seja a última canção. É que, você há de me perdoar, não é fácil acreditar nisso de uma canção depois da qual não se ouvirá mais nenhum acorde. Nossos corações não estão preparados para isso. O meu não está. No fundo obrigamo-nos a acreditar em outra coisa, não importa quão absurda seja. Ouvimos aquele chiar de cordas velhas, de um piano que já não é afinado como antes e de um bandolim ao som do qual moças e rapazes dançaram outrora ébrios da mais simples e ingênua alegria, a de sentir-se amigos das possibilidades, e percebemos a mudança de timbre. Mas escondemos nossos medos atrás de sorrisos agonizantes, como num pacto.

Porque houve um tempo, e parece que foi ontem, em que os dias eram nossos, em que crianças olhavam para o alto, boquiabertas, enquanto os fogos bordavam no céu uma seqüência de quatro números, e as pessoas gritavam em êxtase, desejando felicidade uns aos outros, esperando uma vida um pouco melhor neste ano novo que se insinuava. Enquanto isso o mundo rodava e tudo, absolutamente tudo, acontecia ao som destas cordas agora frágeis e sem brilho. Eram acordes que não acabavam mais. E durante todo esse tempo nós não paramos de dançar, nem por um segundo, mesmo enquanto nossos ossos doíam, mesmo quando cortaram nossas pernas, nós continuamos a agitar os braços ou apenas a tamborilar os dedos, para que ficasse claro que aquela música ainda era nossa, que ainda estávamos no baile e a noite nos pertencia. Não nos expulsariam assim do nosso próprio mundo sem que sequer lutássemos, sem que nossa humilhação alcançasse os céus, um abismo de indignidade a nos separar dos mais caros de nossos desejos.

“Feliz ano novo!” e o estalo de um beijo no rosto. E qualquer um se espantaria com o brilho dos próprios olhos diante do espelho ao perceber o emaranhado de vísceras e palavras e alma e tudo o que há de bonito nessa vida e de todo o medo e sede de amor, tudo contido nessas palavras: “Feliz ano novo!” Mas talvez você tenha razão. Talvez esta escacês de acordes seja o fim chegando. E quando não houver mais ruídos sobre nossa vergonha, quando ela se mostrar nua e transparente, quando nossas palavras se revelarem de um tolice oceânica e a nossa culpa for visível à toda terra, então...

14 março 2006

Uma informação do interesse de todos: hoje comprei o meu clássico desodorante nívea, entrei no site e me cadastrei na promoção. Tô concorrendo a uma das 60 viagens para assistir a copa do mundo e morrer com os miolos explodidos num atentado terrorista. Com acompanhante. Muito chique.

Mais Baricco no cinema

Bem, quem me conhece sabe da minha paixão pela obra do romancista italiano Alessandro Baricco, pouco conhecido no Brasil, até onde sei. Como já disse num dos primeiros posts desse blog, conheci Baricco através do filme A Lenda do Pianista do Mar, de Giuseppe Tornatore, que também dirigiu Cinema Paradiso. A Lenda é a adaptação de um monólogo de Baricco chamado Novecento. Depois disso fiz bem uma dúzia de prosélitos, dos quais me orgulho muito.

Foi então com imensa alegria que descobri há alguns dias que outros dois livros de Baricco estão sendo filmados: Seda (excelente, muito celebrado, mas na minha opinião o mais fraco de seus cinco livros publicados no Brasil) e Sem Sangue devem entrar em cartaz esse ano. Pensa em alguém feito uma criança na estréia... ou na locadora mais próxima, pq não duvido nada de não entrarem em cartaz nos cinemas daqui.

No mais, se tudo der certo, a fofa da Giovanna vai trazer Sem Sangue, (o penúltimo de seus livros) de Portgual pra mim. Aí só vai ficar faltando o último, Questa Estoria, que ainda não existe em português. Já deve estar saindo em inglês, mas não é a mesma coisa. Por ter lido e relido os livros trocentas vezes eu acabei fazendo uma ligação entre o Baricco e a língua portuguesa. Estranho se pensármos que ele escreve no idioma da Velha Bota, mas é assim. Bem, agora é cruzar os dedos e esperar, sonhando com o dia em que vão filmar Mundos de Vidro e Oceano Mar.

13 março 2006

Ensaio sobre auto-piedade


No fundo da pia branca meus pelos pousam dispersos. Há quem acredite ser possível prever o futuro através das marcas deixadas pela borra de café no fundo de uma xícara vazia. Então talvez seja possível também com fios de barba no fundo de uma pia. Mas eu sou cético demais para essas coisas. Sou cético até pra acreditar no mal que o reflexo dos meus olhos parece anunciar. Aqueles olhos baixos e opacos refletidos no espelho são os meus olhos. Portanto, se prevejo uma ruína inevitável para mim é, ao contrário, de forma puramente racional, medindo à exaustão todas às evidências que coleto no exercício desgatante de auto-análise ao qual me submeto todo o tempo. Não há dúvidas: eu estou enlouquecendo. E não há nada de lúdico nisso. A pergunta é: como é possível que eu tenha pelos na cara e ainda não tenha aprendido? Como é possível que a vida me doa hoje como se fosse a primeira vez? E que o torpor que tantas vezes me acomete, como uma neblina mil vezes odiada, seja uma vergonha tão intensa que nem mesmo a visão dos meus inúmeros companheiros de fracasso pode aplacar? E talvez a cena toda fique ainda mais intragável por causa dessa insistência entorpecida, esse caminhar de zumbi, essa esperança velada de ainda ter algum auto-controle, de acreditar minimamente no futuro.

Desfiro um golpe contra o espelho e conto os cacos que se grudam aos meus dedos, meu punho ainda cerrado, o sangue a escorrer. Há cacos que permanecem lá, ainda presos ao todo. Não é uma manifestação de solidariedade e desespero? Enquanto alguns foram apartados do todo do qual outrora fizeram parte, condenados, restando-lhes apenas a ridícula missão de fazer brotar sangue dos meus dedos, outros permanecem lá, cacos, mas juntos ao todo. Não é isso que deve ansiar a alma de um homem afogado nessa festa de concreto? Encontrar alguma dignidade, alguma viabilidade existencial na sua natureza de caco. Que o ínfimo fragmento tenha o direito de existir sem se encerrar numa infinita insignificância é o que reivindicamos, nós espíritos desprovidos de solidariedade. Nós, espíritos isolados.

E essa vergonha? Sob que chão enterrar esse vexame? Porque é preciso admitir: toda essa lamúria, essa paralisia, essa vida que cessa, está suspensa, presa apenas pelo frágil fio de uma auto-piedade mesquinha e ressentida. Porque nós, os inválidos do espírito, nós odiamos todo aquele que consegue fazer do mundo algo que se pareça com uma vida. Nós odiamos os corpos que se movem desenvoltos, nós odiamos a destreza com que suportam a dor, odiamos a lucidez quando ela os torna dignos e a estupidez quando lhes protege a alma.

Os meus pelos no fundo da pia não podem me dizer nada de pior do que aquilo que calculo a partir do tremor das minhas mãos. E, em último caso, há o reflexo fragmentado de meus olhos no espelho. Esse suposto diagnóstico da minha falência.

Viram como isso aqui tá bonitão? Coisa da Nayara. (obrigado pela enésima vez baby, uma vodka geladinha te espera) Além de escrever muito bem (www.versaoaovivo.blogger.com.br) a moça é cobra nesse lance de templates.

Uma novidade bacana: agora faço parte de uma equipe que está produzindo um documentário sobre Mauro Borges (governador de Goiás durante a ditadura). Eu adorei. O documentário é o pretexto que eu precisava pra estudar mais atentamente o período e dar uma passeada pelos arquivos. Assim me isento da acusação de que Teoria da História é coisa pra historiador alérgico, que não pode por a mão em arquivos rssssss Além do prazer de estar mexendo com cinema pela primeira vez. Bem bacana. No mais as aulas do mestrado começam essa semana e eu sigo lendo Nietzsche e Thomas Mann, regados a muito Massive Atack. Estudar muito, escrever demais. Tô adorando esse negócio.