22 agosto 2007

Pequeno Tratado Sobre a Perplexidade e o Desespero Brando

"Nenhuma razão para pena. Esteja ela onde estiver, tem o cabelo incandescente como uma torre, queimando-me de longe, fazendo-me em pedaços apenas por sua asuência."

Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha.



O telefone tocou e do outro lado aquela voz foi dizendo súbita, torrencial, “o tempo não pára, meu bem, o tempo não parou um só segundo desde a última vez, lembra?”. Aquela voz trêmula, embargada, eu a reconheceria de imediato, mesmo que entre nós houvesse décadas e não apenas os cinco meses entre aquele dia e a última vez em que havíamos nos falado.

“Eu sempre quis saber de você, sempre quis ter notícias suas, mas a verdade é que não importava, você entende, não importava e eu tinha de ser forte com a vida, você disse, era preciso aceitar o tempo e a morte, pra que a vida pudesse dar o melhor de si, foi você quem disse, e eu me lembro (...)”. Eu ouvia.

Foi num amanhecer de domingo que eu a deixei, sentada numa calçada, seus dentes castigando os lábios que já sangravam e ela toda ruínas disse que eu a deixasse, que não havia nada mesmo a ser feito, que eu tivesse a coragem, uma vez na vida, de ser fiel à bendita força que eu sempre invocava sobre nossas misérias e que abandonasse esse ímpeto de Cristo que, ademais, era só um jeito de resolver minhas culpas.

Eu sabia que era um preço justo, os meus olhos secos, minha mudez, a calma desolada com que virei as costas e parti, a ausência ferina que me abateu nos dias que se seguiram. E paguei. E quando digo “justo” não falo sobre uma suposta correspondência com as culpas todas, mas porque não sabia mais o que era injustiça, porque não me lembrava mais de onde começávamos e onde terminávamos. Ou porque nos lembrávamos, mas apenas vagamente, de um modo que não era possível narrar, faltavam tantas peças no enredo. Enfim, uma coisa, que se fosse pra ser reconstituída em detalhes levaria horas pra contar, mas o fato é que estávamos lá, daquele modo.

Entre todas as incapacidades que, naquele tempo, faziam com que vivêssemos numa espécie de parasitismo mútuo, na mútua e cúmplice perdição que consistia aquele nosso culto de pequenas violências, entre todas, havia a incapacidade de nos condenarmos totalmente por aquilo que éramos, ou que havíamos nos tornado um para o outro. E isso nos doía. Mas era uma incapacidade, que nos parecia incontornável. Porque suspeitávamos.

Suspeitávamos que alguma coisa havia de errado, que em algum lugar dessa história toda, a nossa história, talvez num ponto minúsculo, naquele lugar estaria claro, veríamos clara como cristal a razão pela qual, afinal, não somos os únicos reponsáveis pelo que nos tornamos. Essa suspeita, no entanto, nunca conseguimos comprovar um ao outro.

Por isso, sim, pode-se dizer que havíamos cessado de nos consumir naquele mútuo e lento assassinato. Não havíamos nos matado um ao outro e por isso havia alegria naquela voz do outro lado da linha. E havia no meu silêncio, ela sabia. Eu ouvia, enquanto, ela seguia, dizendo o que lhe vinha à mente, sobre o dia, tinha sido um dia daqueles, uma quantidade monstruosa de trabalho no escritório, e achava uma coisa, sinceramente, que havia aprendido o holandês tão rápido por ter ido trabalhar num escritório, e não numa fábrica. Falava sobre o que quer que fosse e sabia que, naquele momento, eu não pensava no que ela dizia, mas em sua voz, no fato de que e dizia coisas, e de estava a milhas. Certamente sabia que eu pensava com calma, que não havia do lado de cá qualquer taquicardia ou algo do tipo. Uma coisa serena, se se quiser. Assim nos comunicávamos. E era lindíssimo, mas também doía. Porque éramos incapazes de nos inocentarmos totalmente pelo havíamos feito de nós. No fundo, tínhamos vergonha, de que aquele fosse o jeito possível de que houvesse, entre nós, alguma alegria.

A certa altura, interrompendo-a no momento em que falava que havia lido um livro dum cara da cidade e que era inacreditavelmente bom, eu perguntei:

– Como você está, meu bem?

Era sempre nessa parte que a coisa complicava pra ela. Fazia um ar que lembrava aquele de quem quer fazer parecer que não sabe do que se trata, mas era diferente. O seu tom queria dizer era o seguinte: você sabe que eu sei do que se trata e, e também sabe que isso é demais pra mim, assim. E não é que eu não ame cada centímetro disso tudo, você também sabe. Mas não consigo dessa forma. Esse tom de minha voz é o mais hábil, o mais engenhoso modo que encontrei de dizer que, dentro de segundos, vou desligar. Volto a ligar,quando dentro de mim você se mover, como hoje. Quando se mover feito o filho esperado e vivo, dentro da barriga da mãe. Concebido em amor e zelado por treze anjos, que em sua infância, montam guarda em torno de sua cama. Assim, quando você se mexer novamente dentro de mim desse modo, causando a surpresa, a alegria súbita e impiedosa, porque incompreensível, a alegria que trazem os filhos aguardados, enquanto são aguardados, parece patético, eu sei, mas é que isso será o melhor de você em mim, mesmo que, evidentemente, meu juízo seja suspeito, já que o melhor de você, pra mim, é aquilo que você me faz ver., então eu ligo. Eu te amo. Cuide-se.

Mas nenhuma dessas palavras chegava a dizer. Apenas ia amolecendo a voz, e era rápido, coisa de segundos. Eram duas ou três frases dispersas e desligava, despedindo-se apressadamente, dando sempre a entender que alguma exigência imediata à sua volta havia forçado-a a desligar. Tentando também deixar claro que isso não era verdade, o que, como ela evidentemente sabia, não me escapava. Nos entendíamos bem, no geral.

É que não conseguíamos nos condenar, tampouco nos perdoar. Já caminhando em direção à estante, naquela indecisão boa de ter que escolher, entre dois ou três, aquele livro que se começará a ler logo após ter acabado um outro; já com a mão direita sobre um e a mão esquerda sobre outro; ambos de pé na estante, e eu ora fitando a lombada de um, ora a de outro – haveria o momento de tirar ambos, foleá-los, ler de cada um o primeiro parágrafo, ainda enquanto apenas os tocava, bem, eu pensava que ela podia estar mesmo fodida na Holanda. Podia estar entupida de cocaína, embora não me parecesse típico do temperamento dela. Gostava mesmo era de encher a cara. Era possível que estivsse infelissíssima na Holanda. E já quando folheava um livro e lia seu primeiro parágrafo, mesmo naquele momento, havia claro em minha cabeça: éramos, um e outro, inconfessáveis. Podia ser também que estivesse bem, nada demais, quem sabe muito bem, cheia da grana ou rodeada por gente terna e honesta ou as duas coisas, embora pouco provável. De qualquer modo, assim como na vida nada havia nos matado ou salvado e nós, tampouco, havíamos feito tanto um pelo outro, assim também éramos inconfessáveis.

08 agosto 2007

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Não foram necessários mais que os primeiros minutos para sentir: havia algo em suspenso. Era manhã ensolarada e conhecia-o bem, esse algo. Em dias assim achava vagamente elegante crer nos astros: um desenho qualquer que lhe regesse os passos, um consolo estético, pensava. E dispunha ritualisticamente a mesa para o café-da-manhã que tomaria sozinha. Não cria em quase nada, mas conhecia bem dias como esse e sabia que era preciso se calar, tanto quanto possível, era urgente cessar a voz, em toda parte de si abrandar o verbo, ousar o silêncio mesmo sabendo-o escuro. É possível que não voltasse, sem sinais pelo caminho, o silêncio demanda coragem.

Partiu uma fruta em quatro partes, aspirou-lhe o aroma com reverência. Um rito aquilo? Um culto, talvez. – os objetos de sua vida não mais que despojos de uma guerra antiqüíssima e, talvez daí, a perene sensação de ter nascido devastada. Não, isso não lhe roubava mais a paz. Olhos fechados mordeu a fruta e sorveu um longo gole de leite, puro e gelado. Em breve acenderia um cigarro.

Na guerra, pensou, a sede enlouquecia os homens, disse baixinho: a fome enlouquecia os homens.

Sabia como proceder. Lenta e branca levantou-se e, ficando a mesa como estava, abriu bem a janela recebendo forte no rosto o bafo do monstro sempre arquejante: a cidade diabo-velho sopra vento e ruído, todos os barulhos do mundo, que importava? O silêncio que cultivava não temia ruídos, antes sobre ele erguia-se, florescia como uma blasfêmia. Porém cristalina - que isso não costumam ser as blasfêmias. Tinha carinho pela cidade, saudava-a cúmplice: ambas tão doentes. Fechou a janela, acendeu o cigarro.

Na guerra, pensou, erguiam-se trincheiras, o que devia ser muito sábio, afinal, evidência de uma grande e antiga sabedoria, erguer trincheiras.

Foi quando na cozinha entraram três soldados, dois deles carregando o terceiro, e deitaram-no sobre o piso branco, derrubando no caminho a torradeira e três copos sujos de sobre a mesa. Havia vidro e sangue pelo chão quando o mais alto e velho disse, fitando-a ajoelhado sobre o ferido: proteja seus pés há vidro e sangue pelo chão. Então foi até a sala, calçou a sandália e ligou o som.

Queria a música que contivesse mais silêncios, que existisse como contraponto de si mesma. Queria ouvir, entre as notas e os acordes, as pausas. Era sempre a mesma música, espalhada em todas as outras e, em dias assim, sempre a encontrava e a ouvia repetidas vezes, até não escutar mais nada.

Nessas horas costumava se dirigir ao fogão, como agora. Preparava um chá que nunca bebia. Gostava apenas do cheiro se espalhando pela casa, preparava-o enchendo os pulmões, depois o deixava por alguns minutos no fogão, até esfriar, e então jogava fora. O chão da cozinha estava agora branco e límpido como sempre. Sorriu antiga e acendeu outro cigarro: não tardaria a chegar a noite e, com ela, o sono, o silêncio, a claridade.

À porta que ligava a cozinha ao corredor apareceu o soldado, o mesmo que zelara por seus pés, e perguntou quanta ajuda ela poderia fornecer. Ao que respondeu: nenhuma. E claro estava que não era tanto uma questão de poder quanto de querer. Passou pelo soldado sem dele fazer caso e dirigiu-se ao quarto – começava a enfadar-se, o que era um desequilíbrio num dia como aquele. Sobre a cama, em silêncio, o ferido arquejava, tomava um punhado de lençol com as mãos trêmulas e depois o soltava, arranhava novamente o colchão, tornava a agarrar o lençol. Ela, sentindo como uma agulha o tédio lhe tocar, respirou fundo e, das costas do outro soldado, o mais moço e assustado, arrancou o que parecia ser um fuzil. Com ar cansado enfiou-lhe boca adentro do ferido o cano e disparou. Sem ruídos. Era uma casa de silêncios, aquela, em dias como esse.

Então começaram a dançar, os dois soldado. Ela, achando-os ligeiramente engraçados, desajeitados, depositou a arma sobre o que morrera e retornou à cozinha. Sentada à mesa, anuviada, lembrou que de uma outra vez houve um anjo. Lembrou com ternura de como o tinha posto sentado numa antiga cadeira elétrica, aprumando-o bem, sem jamais deixar de olhá-lo nos olhos. Havia muita cumplicidade entre ambos quando ela, abrindo a portinhola de metal na parede ao lado da geladeira, pensou contente que mataria um anjo – e que aquilo era cafonérrimo. Puxou a alavanca do meio – a da esquerda desligava a energia do chuveiro, a da direita deixava o apartamento às escuras –, enquanto pensava: eu vou matar um anjo. A luz da cozinha, se tornava fraca até quase apagar-se, por causa da descarga elétrica, toda vez que descia a alavanca. E ela retribuía com o olhar encantado. O anjo se contorcendo.

Preferia-o aos soldados, mas nunca era possível escolher. Emtão tirou a sandália e, voltando à sala, pensou: talvez seja uma questão de música, talvez seja preciso uma música ainda mais leve para quando a noite chegar.

O dia seguia em silêncio.



Esse texto é duplamente devedor de bandas que ouço sempre: o título é o mesmo de um disco do Sigur Rós e não consegui pensar em nada que ilustrasse tão bem a narrativa. É também uma pequena homenagem, já que devo uma parte de mim a essa banda. A imagem do anjo eletrocutado, por sua vez, foi inspirada numa frase de uma música do Silver Mt. Zion que diz : "they put angels in the eletric chair, straight up angels in the eletric chair". Sempre quis cunhar um "retrato verbal" dessa imagem, e cá está.

03 agosto 2007

O Jardim*

“Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite e aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. (...) E quase paro de sentir fome”

Caio Fernando Abreu, Pequenas Epifanias.


Em meu apartamento quase não há móveis. É que minhas economias são rigorosamente gastas em livros, comida, bebidas e cigarros. Com saúde apenas vez ou outra, que milagrosamente as coisas não vão de todo mal com esse meu corpinho sedentário e envenenado de nicotina.

Estive pensando: muita vida passou por aqui nesses quase dois anos. Há espalhadas nas cinco prateleiras de minha estante quatro gerações de amores, abrangendo os últimos oito anos de minha vida. Assim também meu ap está infestado de marcas e vultos. Não apenas das namoradas e não apenas lembranças tristes, mas muita coisa amada deixou por aqui suas marcas.

Não que tenham sido fáceis, os meus dias aqui. Foram por demais intensos, tingidos com gravidade, como quase tudo em mim – os olhos, o problema são os olhos! Foram, por vezes, mesquinhos até à exaustão. Mas, não raro, surpreendentemente nobres, generosos, deliciosamente fraternos.

Em breve, por razões diversas, talvez eu precise de alguém para dividir isso aqui – há alguém que neste momento está em algum lugar sobre a América, voando pra Seattle, e que deveria estar aqui. Mas, por ora, apenas me ocorre que, daqui não muito tempo, talvez menos do que os dias que já passei aqui, eu devo partir. Não sei exatamente pra onde, e pode ser mesmo que eu esteja enganado, mas creio que não: eu devo ir embora.

E tem estado cada vez mais claro pra mim que, em grande medida, é disso que se trata a vida: de ir embora. Há também as nossas indispensáveis apostas de permanência, em lugares, em pessoas, em partes de nós mesmos – porque também é preciso saber ir embora de si –, apostas sem as quais não viveríamos. Mas algo tem estado cada vez mais claro em mim, e isso aprendi com Nietzsche, com Walter Benjamin; com Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector; com o tempo, antes de mais nada: é preciso saber partir, assim como é necessário aceitar “a continuidade da vida e das pessoas” (o bravo Caio). Dá vergonha dizer – não me confundam com o oceano de merda que é toda essa literatura de auto-ajuda – mas é nesses termos que tenho pensado: é preciso saber morrer um pouco a cada dia e entender que isso é viver. E que pode ser algo belíssimo ou não, mas irremediável sempre. A vida não faz acordos.

Andei relendo Nietzsche. Muito me espanta que com ele tanta gente aprenda a ser estúpida e vaidosa. Em sua obra vejo, entre outras coisas que reprovo (sua teoria política, principalmente), muita generosidade e lealdade para com a vida. Trata-se de não mais ver o tempo e a morte como inimigos, mas sim chamá-los para si, aceita-los na carne e no espírito, o que não é fácil. Com Nietzsche, parece-me, aprendemos mais que qualquer coisa a ser fortes, com uma força perigosa, precária, improvável, que talvez guarde alguma semelhança com aquela “frágil força messiânica” sobre a qual falava Walter Benjamin. Tanto em Benjamin quanto em Nietzsche há uma espécie de religiosidade sem Deus. Trata-se de um vitalismo e tem a ver com aquilo que alguns chamaram de Teologia Negativa.

Eu mesmo, que tampouco creio no Altíssimo (não me é dado ver nada além desse mundo e dessa vida), estou cada vez mais convicto: o cerne da vida é um fogo cultual e todas as questões vitais são, em última instância, questões religiosas. Apenas é preciso ter em mente o ligeiro imprevisto de que, até prova em contrário – prova essa que não chegará jamais, sabemos bem – estamos sós. O céu está vazio, ou melhor: nossos olhos jamais enxergam os céus. Somos auto-deserdados e sobre isso, como sempre teve claro o piedoso Wittgenstein, não é bom se estender: “O místico existe e é inexprimível”, ou ainda seu clássico aforismo, já no fim do Tractatus Lógico-Philosophicus: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”.

Enfim, deveria haver em meu apartamento agora um daqueles ventos que seguem brandos as coisas que se vão. Porque uma ausência há, firme e delicada – além de tantas outras. Vento não há. É que toda poesia disponível na matéria de minha casa é dura, é áspera, tem os olhos arregalados como os de um animal em fuga, e eu aceito: uma terra assim é que a beleza revolve com destroçadas mãos de santa.

E não suponham aqui mais bravura do que realmente há: é claro que tenho medo, todo o tempo. Mas com isso aprende-se a conviver, afinal, qual a alternativa? Nem mesmo os olhos de Deus sobre mim, nem mesmo aquele sol incessante, aquele calor incendiário, nem mesmo Ele me curaria do pavor. Em seu íntimo, parece-me, foram sempre apavorados os espíritos mais piedosos. Mesmo os profetas, ou principalmente eles. Pois a terra não é lugar de redenções.

Assim é que agora, sentindo claramente a ausência de quem aprendi a chamar de Flor, fito quieto em minha imaginação os instrumentos de jardinagem. E lembro-me, mais uma vez, de Nietzsche: “E não esqueçam o jardim, o jardim com grades douradas! E tenham pessoas à sua volta, que sejam como um jardim – ou como música sobre as águas, à hora do entardecer, quando o dia já se torna lembrança: – escolham a boa solidão, a solidão livre, animosa e leve, que também lhes dá direito de continuar bons em algum sentido!” Deveria eu fazer alguma coisa? Ainda não sei, creio que não.

É que nunca fui muito bom com jardins, tampouco com solidões, embora ache ambos belíssimos. Acabo deixando intocados na imaginação os instrumentos de jardinagem: um pequeno rastelo, uma pazinha qualquer com cabo verde fluorescente – comprada em algum shoping, no mesmo dia que um livro da Hilda Hilst – e o simpático regador azul no qual há, adesivada, uma frase outrora concebida em amor (como se diz dos recém-nascidos): “Até o céu, sempre!”. E essa frase ecoa, como um bramido do mar, como o murmúrio de alguma fera infinitamente sagrada e adorada, milenar: “Até o céu, sempre! Até o céu, sempre!”.

Sorrio um sorriso singelo, pequeno – sorriso “rs” como ela o apelidou – e reconheço satisfeito em meio à tristeza branda: não há amargura. Apenas saudade e gratidão infinita.

E a certeza de que devo fazer um adesivo com aquela frase que um dia, vinda sabe-se lá de ontem, caiu em minha cabeça feito pedra e nunca mais se foi. Quero-a gravada em minha lápide, assim: Ternura é força.

Por ora vou colocá-la na guitarra.

Até o céu, claro.
Para todo o sempre.


* Este texto é dedicado a uma pá de gente querida que, de um modo ou de outro, constitui uma boa parte daquilo que sou.

Aos de casa: minha avó, que se foi, e minha mãe, que é imensa. Também ao Batista, que sempre facilitou as coisas. Obrigado.

À Luciana, Paulo André, Josias, Luiz Felipe, Balta e Polyana, meus amores.

Ao Marcelo e à Maressa (o melhor de mim). Com eles tenho um pacto: como queria Clarice Lispector, nos prometemos não morrer jamais. São pessoas que sabem dizer amém. Ninguém duvide que conseguiremos.

Aos seres actêmicos (particularmente ao Reginaldo), com quem me fiz música.

Ao Onésimo, pela honestidade de nunca ter sabido o que fazer comigo.

À Suene, que sempre foi, em mim, um silêncio. Hoje compreendo: era um eco, nem por isso menos convincente.

À Pespia, que se foi (sem ressentimentos, fico feliz por ti), e à Ká, que tá vindo qualquer hora dessas.

Ao Sérgio, mestre excêntrico que me ensinou coisas que apenas tempos depois fui entender. (E não falo de teoria). A ele todo meu respeito e admiração.

E, por último, mas principalmente, à Lyanna (Frô), que nunca acreditou poder chamar-se felicidade esse lento e vigoroso desvanecer.

Queria ser capaz de inventar para ela o Deus em quem não creio (embora anseie em diligente recusa) e cuja falta nos queima. Somente para que fossem incessantemente guardados os seus passos que, por ora, não sei aonde vão. Para que, ao fim, fosse ela toda luz. Mas devo desculpar-me, isso não sei fazer. Não há quem saiba. O que sei é desejar, com todas as minhas forças, com toda a fúria do meu amor, que ela seja clara e leve, viva como a falta que faz. Bem-vinda será sempre.

São esses, em sua maioria, aqueles que melhor conhecem os ares e as sombras de mim ou de minha casa.

Quando, no futuro, me lembrar desse apartamento e desses dias, seus rostos me serão claros. Assim como quando chegar a dor que cessa palavras e se fizer noite e não houver para onde ir. De um modo ou de outro, me serão sempre claros.

A eles força, graça e amor. E uma morte serena.