18 dezembro 2006

A Montanha

Abriu sem bater a porta do pequeno quarto no fundo do quintal e desabou sobre a cadeira que, juntamente com a cama e a escrivania, compunha toda a mobília do aposento. Vestia calça jeans e uma regata branca, que exibia os contornos dos braços e pousava sobre os seios médios e firmes. Ele achava-se sentado ao pé da cama.

Esperou que ela recobrasse a regularidade do fôlego, que se abrandasse o primeiro turbilhão de lágrimas. Agora era deixar aquela fraqueza escorrer pelos olhos, voltados pro teto, a cabeça tombada pra trás sobre o encosto da cadeira, a boca entreaberta. Depois viriam as primeiras palavras, ele sabia.

Começou quando ela era criança e ele já havia abandonado a casa velha pra recolher-se no quarto dos fundos. Fizera-o em paz, sem problemas com a filha ou o genro. Um dia dissera que estava velho e que precisava ficar só pra ter o coração no lugar quando chegasse a hora de morrer. No começo tentaram dissuadi-lo, mas logo perceberam que a coisa era séria. E que não sofria, pelo menos não parecia sofrer. Deixaram-no. Visitavam-no dia sim, dia não, ora o genro, ora a filha, levando comida e, às vezes, algum livro cujo desejo havia lhes comunicado. Eram sempre recebidos com ternura. Com o tempo somou à mobília uma pequena geladeira e um fogão. Traziam os mantimentos semanalmente e passou a cozinhar pra si. As visitas diminuíram, duas, três por semana, mas não por descaso. Perceberam que gostava de estar só. Tudo na mais perfeita paz.

Saiu uma única vez, três anos depois. Cruzou o quintal, passou pela velha mangueira que plantara vinte anos antes e adentrou à casa velha pela porta dos fundos. Os cabelos já quase totalmente brancos, cuidadosamente penteados. Na pequena sala de classe média-baixa todos interromperam o falatório – a filha, o genro, os amigos e parentes. Fitavam-no com reverência. Não é que botasse medo, não era isso. Mas achavam-no uma excentricidade, uma coisa inexplicável, sagrada, talvez, enfim, ninguém entendia como era possível viver dentro de um quarto sem ser louco. E louco não o achavam. Tinha nos olhos uma ternura lúcida demais, não era loucura aquilo.
– Já íamos levá-la pro senhor ver, pai. Acabamos de chegar – disse a filha, mal contendo a surpresa de ver o pai fora da sua guarida.
–Tudo bem. Eu quis me antecipar – disse sorrindo pequeno. Vestia uma camisa de passeio. Ela se aproximou, tomando-lhe as mãos.
– Lembra quando te contei que estava grávida, lembra o que o senhor disse? O senhor disse que desejava que ela fosse clara. O senhor parecia tão feliz, pai. Por isso chama-se Clara.
A recém-nascida achava-se no colo do pai, não chorava, não dormia. Movia os olhos sem direção, em busca de uma coisa qualquer. Tornariam-se mais escuros com o tempo, não menos inquietos.
– Posso? – disse ao genro, e este a entregou. Tomou-a um instante como se toma um recém-nascido, ainda sabia como fazê-lo.
Fitou-a e seus olhos se cruzaram. Sorriu um sorriso de lábios, com olhos vivazes e semi-cerrados, como se estivesse diante de uma aparição da Virgem, mas como se fosse muito íntimo dela. Tinha uma calma secular.
Então, para o susto de todos – uma amiga da família chegou a soltar um “meu Deus!” abafado com as mãos – ergueu-a diante de si, os olhos marejados, o semblante vigoroso:
– Sê forte, Clara! Sê forte e bela! – e devolveu-a ao genro despedindo-se de todos com um “boa noite”. Beijou a filha na testa e saiu.

*****

Agora ela achava-se ali, desabada na cadeira velha, chorando calada. Tinha os olhos cravados no teto. Os dele oscilavam do chão pra ela, dela pro chão. Nas mãos um cigarro que rodava sem parar. Tomou um isqueiro e passou-lhe ambos. Ela acendeu, deu uma baforada e olhou-o nos olhos pela primeira vez.
–Tá tudo escuro, vô. Tudo tão escuro.
Começou quando era criança.
Visitava-o sempre, cada época de um modo. Bem novinha ia quase todos os dias, conversava, conversava, contava um sem-número de coisas. Sentia-se como uma mensageira do mundo lá fora. E achava desagradavelmente extravagantes os velhos que caminhavam e faziam exercícios no parque, com poses de atleta. Achava-se superior às outras crianças da escola, porque tinha um avô que vivia noutro mundo. Isso tinha claro: a porta do quarto dos fundos era a passagem pra outro mundo. E fazia perguntas, sempre, inúmeras. Mas o fazia com calma, não era uma criança afoita. O avô ouvia, arrazoava com ela o sentindo de algumas questões mais obscuras, pensavam juntos. Acontecia mesmo de deixarem de lado uma ou outra questão por chegarem ao consenso de que era complicada demais para ambos. Mas quando ele respondia, ela guardava a resposta como um segredo. E quando era ele a perguntar, a pequena tomava a questão como uma chave e experimentava nas várias portas que tinha dentro de si. Tinha ouvido isso dele, isso, de que as pessoas têm portas e andam a procura de chaves. Se a pergunta era simples logo a chave rodava no buraco de uma das primeiras portas. Se, ao contrário, era complicada, ia embora e prometia trazer a resposta no dia seguinte. Experimentava, experimentava, forçava fechadura e, às vezes, ia dormir tarde, exausta, sem conseguir abrir porta alguma. No dia seguinte a visita era mais tarde, passava o dia se contorcendo, ocupada com chaves e maçanetas e, às vezes, dava-se por vencida. Entrava no quarto dos fundos inconformada e devolvia a pergunta, áspera, não raro em meio a soluços.
– Porque eu quis que os meus amigos morressem, vô? Eu não sei! E não quero mais! Se eles morrerem eu vou chorar tanto, mas tanto!
Em geral não dizia nada. Acolhia-a no colo até o choro passar, tomava seu rosto nas mãos e dizia: – Você é Clara, meu bem.
E certa vez disse que ia lhe contar uma coisa que precisava não esquecer.
– Há chaves cujas portas nunca encontramos, isso você precisa entender. E é preciso saber viver com portas trancadas dentro de si. Você é uma casa, Clara, entende? É como se fosse uma casa. E não dá pra ir em todos os cômodos que tem dentro de si, não há quem consiga. E não adianta tentar arrombar a porta, meu bem. Há quem passe a vida inteira batendo com os punhos contra as portas fechadas que traz dentro de si, e isso dói, Clara, às vezes dói de enlouquecer. Sabe, de enlouquecer?
– Hum.
– Enlouquecer é, entre outras coisas, quando nenhuma chave serve em porta alguma. Isso acho que dá pra você entender, certo?
– Certo.
– Ou quando o sujeito esquece o que diabos seja uma chave e uma porta, certo?
– Certo.
– Bom.
– E o sujeito pode ser tanto um menino como uma menina, certo?
– Certo.
Foi crescendo e as visitas se tornaram mais breves nos dias de semana. Ela sempre atarefada com as coisas da escola, começando a trabalhar, arrumando namorados, depois a faculdade. Mas passava quase todos os dias no quarto dos fundos e às vezes encontrava-o dormindo. Era breve, um beijo na testa, como está meu bem?
– Você está meio bêbada, han? Quem é o traste da vez? – e ela achava graça dele simular ciúmes naquele jogo tão terno.
– Um sujeito metido a intelectual, mas já saquei que não leu metade do que diz. E trepa com os pudores de um cientista ante uma amostra de bactérias.
– Que lástima.
E ela lhe beijava na testa.
– Durma bem, meu bem.
– Durma bem, meu bem.

*****

Deu outro trago e repetiu, a fumaça saindo ao mesmo tempo pelo nariz e pela boca, cotovelos sobre os joelhos, mãos pendendo entre as pernas:
– Tudo escuro, vô, tudo escuro.
As mãos cobertas de penugem branca pousam firmes sobre seus ombros, testa contra testa:
– Respira meu bem, respira.

*****

– Dá pra entender tudo, vô?
– Não, Clara, não dá.
– E tudo que a gente fala?
– Você entende tudo que fala?
– Não.
– Então.
– Hum.
– ...
– E o senhor, entende tudo que fala?

*****

Ele, nonagenário, havia se isolado há tanto tempo... e o tempo tardara, e viera ela. E crescera. E agora o mundo invadia os limites de sua guarida cravado feito dardos nas costas de Clara, que lhe batia nas costas com os punhos cerrados, molhando-lhe a camisa naquela explosão de lágrimas. Não entendiam nada, mas apenas ele sabia estar em paz com a ignorância, com o tempo e a vida. Apenas ele entendia que era pleno de compreensão. Têm isso de interessante, os velhos: são pessoas para quem, se se quiser, e por mais paradoxal que pareça, o tempo perde a força de sua linearidade. Se tão somente quiserem, e se tiverem vigor e imaginação pra tanto, têm-no como num mosaico. Recortam-no, sobrepõem instantes, misturam lembranças e nomes, e tudo se diz respeito, e tudo se apaga e se redime e se confunde na calmaria dos últimos cansaços. Ou não. E são um inferno os últimos ruídos do relógio, o peso dos anos descendo do teto contra o peito, roubando o fôlego, cada amor ultrajado, cada infâmia, cada fúria não abrandada, cada fogo não extinguido, tudo comprimindo o cérebro banhado de sangue.

Ele era dos que estavam em paz. Tinha o tempo como um quebra-cabeças e dispunha as peças como lhe convinha o humor do dia. Mas hoje era um dia no qual não se podia ver muita coisa, e tinha em suas mãos, contra o peito, desabada de joelhos entre suas pernas, uma peça que não se encaixava por nada: Clara e seus olhos agora tão escuros.

Ela afastou-se um pouco, ainda de joelhos, os cabelos colados à face por causa das lágrimas. Tentava controlar os soluços enquanto limpava inutilmente a face sempre inundada.
– O senhor me disse, vô, muito tempo atrás, que era enlouquecer isso, quando não há chave que sirva em porta alguma. Porra, vô! Isso tá acabando comigo, percebe? Não dá pra levar mais muito tempo, simplesmente não dá!
– ...
– E não é que eu queira parar, mas tô com tanto medo, vô. Tô com tanto medo de não conseguir mais, de não conseguir ir muito longe agora. Eu não enxergo mais nada! E eu não queria parar, vô, eu não queria ter que parar, juro, mas tá doendo demais.
Não era tolo, não é que havia pensado estar incólume ao mundo ocultando-se num quarto, no fundo de um quintal, no meio do qual, há cerca de cinqüenta anos, uma frondosa mangueira não passa um ano sequer sem forrar o chão com seus frutos amarelos. Quando entrava novembro, Clara punha-se atenta. Queria ser a primeira a colher do chão o primeiro fruto. Não pegando do pé, com pau ou pedra. Era do chão que pegava, porque certa vez o avô usara a mangueira para ilustrar por que os filhos, a certa altura, saem de casa. Em geral, era simples com ela. Ela é quem complicava as coisas.
– Mas tem manga que cai verde, não tá pronta pra comer!
– Pois é. Algumas dessas não ficam boas nunca. Ou ficam com um gosto ruim.
– Gosto de quê?
– Ainda é gosto de manga, mas é diferente.
– Hum.
– Amargo, Clara. Ficam com um gosto meio amargo.
A notícia chegou cinco dias depois. Na noite anterior, ela havia passado pelo quarto pra desejar-lhe boa noite. Estava muito abatida, a voz fraca.
– Vim dar boa noite, meu bem.
– Boa noite, querida. Vai ficar bem?
Ela sorriu um segundo, olhou no fundo dos olhos, ele achava-se já deitado.
– Vamos ficar todos bem, vô. De um modo ou de outro, decerto no final ficamos todos bem. Eu estou calma.
Foi o genro quem veio lhe dizer. Clara estava no hospital. Os médicos diziam que era grave, mas havia chances. Ninguém sabia explicar direito o que houve. Havia tomado um monte de remédios, tinham encontrado uma pequena carta no bolso. Mas era preciso ter fé, Clara precisa muito da fé do senhor agora, vamos ter que ser fortes.
Morreu na mesma noite e na manhã seguinte o genro veio lhe dar a notícia. Perguntou se queria ver a carta e acompanhar o velório. Tomou a carta nas mãos, não tremiam, os olhos estavam secos. Apenas mordia o lábio inferior enquanto lia.

Queridos,
Creio que não seja hora de tentar explicar as coisas. Isso aprendi com o vô. É preciso saber desistir de algumas perguntas. E isso caberá a vocês, porque a mim simplesmente faltam forças. Não me tomem por ingrata. Se houver memória após essa vida, o amor de vocês estará gravado em mim. Sempre me amaram como sou; tentem amar-me agora, derrotada, e me perdoarão. Pai, mãe, é com vocês que mais me preocupo. O vô parece o mais frágil aí, mas é quem melhor entende de engolir as birras da vida. Olhem bem pra calma dele, e não tentem entender. Tentem apenas se consolar. A ele, devo quase tudo que conseguir ver de belo com esses meus olhos agora tão negross. Se houver lembrança, vô, a mais cara será o peso terno de suas mãos. E aqui não há mais palavras que bastem. Eu aprendi, vô: vou me calar.
Tentem viver com beleza. E tentem não se culpar se não conseguirem. O que será quase impossível, eu sei. A culpa não nos deixa jamais.
A vida segue imensa! Apenas não tenho mais nada a ver com isso.

Beijo terno da Clara.

Perguntou se podia ficar com a carta, o genro respondeu que sim, claro – a mãe não suportara a idéia de tocar naquele pedaço de papel. Dobrou-a, abriu uma gaveta da escrivania e depositou-a bem no fundo. Disse que não iria ao velório e pediu que o deixasse sozinho. Os dias seguintes seguiram brandos. Um cansaço imenso pairava sobre a casa, sobre o quintal, até o quarto dos fundos. Mas era no quarto de casal, lá dentro, onde achavam-se os ombros mais frágeis. A mãe não conseguira retomar a vida. Duas semanas depois voltou ao trabalho, era visível que tentava, mas os colegas diziam que tinha sempre os olhos rasos. Um dia chegou em casa, deitou-se e não levantou mais. Morrera dormindo, disseram os médicos. O coração sucumbira, sem palavras de despedida, sem solenidades. Exatamente vinte e cinco dias após a filha. O exato número dos anos de Clara. Recebeu a notícia pela manhã, deitado, e assim permaneceu por dois dias. Depois levantou-se, lavou-se e seguiu a vida no quarto dos fundos, entre livros, café e comidas. Ao velório e ao enterro não foi, como não fora aos de Clara.

Daí em diante era ele e o genro, que passou a visitá-lo com mais frequência, talvez pra se aliviar da solidão da casa velha, agora quase que totalmente vazia, a não ser, evidentemente, pela sua própria presença. E, é de se entender, havia se tornado um sujeito melancólico, sorumbático. Não se julgava boa companhia para si mesmo. Então, às vezes, chegava do trabalho e ficava no quarto dos fundos até que o vô dissesse que o deixasse dormir. Mas dizia com ternura, ninguém se constrangia. Deram pra jogar dama, discutir política, preparar requintados almoços no pequeno fogão do vô. Eles, que nunca tinham sido lá muito íntimos – embora não houvessem cultivado qualquer atrito –, tornaram-se bons amigos nos três anos que se seguiram. O genro não arrumara outra mulher e sobre Clara e a mãe nunca falavam. Apenas uma vez tentou obter do vô algumas palavras, dissera:
– Se tivéssemos tido como impedi-la, no momento exato, será que estaria aqui ainda? E com ela a mãe, e tudo como antes?
– É possível, vá saber. É bem possível.
E nunca mais tocaram no assunto.
Um dia o genro, ao chegar do trabalho, colocou a pasta sobre a mesa e, enquanto servia-se dum copo d’água, viu o inusitado pela janela: o vô, achava-se no quintal, sentado na cadeira velha que tinha no quarto. Estava sentado debaixo da mangueira. Saiu com o copo em mãos, a boca aberta, perplexo, aproximou-se e viu nas mãos do vô um fruto, completamente maduro. A cabeça achava-se tombada para trás, como a de Clara no dia em que entrara feito um tufão e desabara na mesma velha cadeira, os olhos cravados no teto, as lágrimas a lhe banhar o rosto. Estava aprumado, penteado, tinha os braços sobre as pernas, apenas a cabeça estava tombada pra trás. E não respirava mais.
O genro agaichou-se, fitando-o bem de perto, o copo d’água numa das mãos, e disse:
– Parece uma montanha.

08 dezembro 2006

não apenas duas, certamente

Acabou de me ocorrer uma coisa.

Há pessoas que estão sempre debruçadas sobre si, tentando decifrar coisas, se orientar, conferir o mínimo de ordem ao caos das subjetividades. Sempre fui assim. Às vezes até o limite da insanidade. Mas com o tempo se aprende muita coisa. Aprende-se, por exemplo, que a fome insaciavel de ordem, coesão, inteireza, pode matar. Não há mesmo como se salvar por inteiro. A isso é preciso renunciar, ou se enlouquece.

O fato é que nos debruçamos sobre nós como se o fizéssemos sobre uma miríade de papéis avulsos, de todos os tamanhos e cores, escritos com letras de todos os tipos. E obtemos alguns progressos. Conhecemos algumas coisas, reconhecemos outras, memorizamos as que aparecem vivas demais para ser ignoradas e impenetráveis demais para ser entendidas. Os papéis "decifrados" são assinalados com um X, e sobre eles colocamos um peso qualquer para que o vento da nossa confusão não os leve. Pra mim, esse peso é sempre uma música, um livro ou a mão de alguém. Verdade é que as mãos tem a não muito conveniente característica de se moverem por conta própria. Daí vamos nós, com apenas duas, na ponta dos pés, tentando estabanadamente salvar papéis que voam pelos ares feito libélulas. Não é coisa das mais confortáveis, acredite.

Quantas mãos é preciso ter pra viver?

Sobre Amós Oz, Israel, os que se perdem e os profetas. E sobre literatura.

Amós Oz é um autor israelense, de quem gosto muito. Li dois de seus livros e estou lendo o terceiro, Meu Michel. Meu favorito é A Caixa Preta. Sempre achei o título um grande achado: trata-se da história de um amor fracassado. Segue o meu trecho favorito, parte de uma carta de Ilana ao seu marido Michael Sommo, à qual ela assina como Sua Mãe. Ela sabia que a maternidade, a paternidade e mesmo a orfandade, são dimensões presentes numa relação erótica.

"Algum brincalhão disfarçado infiltrou-se e nos fez detestar o que tínhamos descoberto. Destruiu o que era precioso, e que não voltará. Nos atraiu com um fogo-fátuo, até que atolamos num pântano e a escuridão desceu sobre nós. Você lembrará de mim em suas orações? Por favor, diga em meu nome que esperamos misericórdia. Diga em suas orações que a solidão, o desejo e a saudade são mais do que conseguimos suportar. E sem eles perecemos no caminho. Diga que tentamos receber e dar amor, mas nos perdemos no caminho. Diga que não nos esqueçam e que continuamos a cintilar na escuridão. Tente esclarecer como podemos sair. E onde fica aquela terra prometida."

Sobre Israel ele diz:

"Durante o dia Israel faz um imenso esforço para parecer uma sociedade determinada, valente, pronta a reagir. [...] De noite Israel é um campo de refugiados, com mais pesadelos por metro quadrado do que qualquer outro lugar do mundo, eu acho. Ali quase todo mundo já viu o diabo."

A descrição que Amós Oz faz de Israel poderia ser perfeitamente aplicada à quase todos nós. Não é exclusividade dos israelenses, ver o diabo. De minha parte, penso que a literatura não faz promessas. Pode salvar, mas não há do que acusá-la se não o fizer. Na Bíblia há sacrifícios que não podiam ser oferecidos em público. Apenas determinados sacerdotes podiam ofertá-los no interior do templo. Em um dos tornozelos era amarrada uma corda, pela qual deveriam ser puxados, caso fossem fulminados pela presença divina, implacável em sua justiça, intolerante a qualquer impureza. A literatura acolhe tais profetas.

07 dezembro 2006

a sagração

Já havia acumulado na carne as cicatrizes que me renderiam a fama de velha sábia e devota, quando vi pela primeira vez a sombra naquele olhar: o cansaço de gerações num par de olhos de menino, diáfanos como as madrugadas frias nas quais se sentava sozinho na varanda. Uma vez deitou em meu colo, tinha já doze anos, e suspirou fundo como se de suas costas arrancassem uma faca outrora cravada com fúria: “Os anos vão voar, Vovó, os anos vão voar, eu sei”. E enquanto se juntava a mim, molhando-me o vestido, eu pensava que era hora de começar meu rosário, de tecer o conjunto de preces que completariam a sacralidade daquela marcha, a busca ritualística pela mão de Deus que, mesmo ela, não poderia manter inteiro o coração envenenado de uma criança como aquela.

Era eu a velha que havia visto tudo e era eu o único lugar em que poderia aguardar quieto o florescer do mal que trazia dentro de si – jacarandá majestoso, cujas raízes profundas lhe drenavam a alma e cuja seiva lhe conferia a turvez do olhar. Os anos voariam, os anos voariam. E em mim não havia vestígios de uma salvação possível, apenas o esboço de uma morte tranquila ou um repouso modesto. O amava demais para tentar salvá-lo, ele sabia.

Queria que tivesse visto as outras faces da fúria, das quais poderia dispor, talvez, para erguer uma vida qualquer, um amor ou uma vingança quaisquer que lhe permitissem escapar daquele destino aparentemente inexorável. Que tivesse conseguido ver a mentira daquele fatalismo – porque talvez fosse uma mentira a necessidade daquele réquiem como a única música possível até o fim dos tempos! Mas não sabíamos a verdade. E não seria eu a pessoa indicada para lhe abrir os olhos. Eu que havia encontrado a posição mais confortável para se morrer em paz, e que aguardava resignada e gigante o fim chegar.

Foi ele infante, mais que ninguém, quem me fez entender a estranha reverência que depositam sobre os velhos aqueles cujos anos são poucos. Pois foi a ele quem dei a esterilidade da minha benção. Apenas porque entendi que era assim que deveria ser, eram essas as cores exatas, esse o arranjo do nosso desespero, a forma como dispusemos nossos medos e nossos sonhos de modo a se redimirem ilusoriamente numa imagem qualquer, porém belíssima. Acima de tudo precisamos de imagens cuja beleza descanse nossos olhos e porque entendi isso o abençoei manhã após manhã e até o último dia. O fazia com singeleza. Dizia “Deus te abençoe, meu filho” e pensava que era lindíssimo dizer aquilo assim. E me sentia bela.

Olhava aquele menino e era como se fitasse o rosto furioso da vida, um recado de Deus, uma profecia encarnada. E era estranho, porque eu o olhava e era o meu menino, e eu acariciava os cabelos colados à testa cheia de suor das noites quentes e os beijava já bem depois do sono lhe aquietar, e deixava o tempo passar, descontava as horas, não pensava na mãe, não pensava na surpresa generalizada que haveria, no susto, no estupor que tomaria a todos, eu só pensava que estava diante de uma coisa sagrada, de um milagre, e entendi que há feridas que salvam e milagres que matam.

Foi com essa solenidade que, no último dia, beijei seus lábios inertes e fiz sobre sua testa o sinal da cruz após cheirar seus cabelos negros. Há mortos em cujo semblante imaginamos notar certos humores; eu sempre achei terrível essa idéia. Em seu rosto não se notava nada. Isso me aliviava.

Quando adoeceu eu me postava ao pé do leito, olhava e olhava, as mãos sempre à sua disposição. Às vezes ele as tomava, estava sempre a engolir em seco. Dizer não dizia nada, nunca mais disse. E eu percebia que todos julgavam ser eu a melhor pessoa para ocupar aquele lugar. Diziam que eu tinha a calma necessária, que eu não o oprimia com minha aflição, como o faria a mãe, que vagava pelos corredores do hospital feito um zumbi, as mãos junto à boca. Os médicos fizeram tudo, pareciam comovidos. Mas morreu numa manhã e nunca souberam dizer do quê. Acordei de um cochilo e não respirava mais. No laudo há uma descrição complicada que nunca fiz questão de entender, mas parte da família vive num embate jurídico com o hospital. De minha parte, pouco importa. A mim basta a lembrança do seu silêncio nos últimos dias, a calma com que morria, a calma, a calma com que se ia, com que se apartava de nós, aquela calma.

No último dia, dizem, meu semblante era sereno e lavado de lágrimas. Chegaria a hora de gemer, de grunhir feito um animal a perda do bendito fruto pueril. Mas ali, no último dia, enquanto todos procuravam o semblante correto, as palavras corretas para a mãe desfalecida na cadeira ao lado do caixão, naquele dia eu era uma sacerdotisa. Era eu o cordeiro em cujo corpo o desespero de todos era expiado. Era eu a calma de que ninguém era capaz. E oferecia a Deus o espetáculo da minha resignação. Havia me despojado das altas exigências que me ardiam na infância e cultivado um coração modesto, envolto no cansaço redentor que me protege da amargura e me confere a brandura do olhar.

A última oferta, posta no altar daquele culto, foi a dança demente da mãe que, vendo o caixão descer à terra, não se pôs a gemer ou prantear. Não. Fez outra coisa. Naquele fim de tarde escuro, sob um céu que, ironicamente, teimava em manter-se aberto, luminoso, a mãe se livrou do mal: pôs-se a dançar, levíssima. Já era uma senhora, mas dançava de modo leve e delicado, como se não tivesse feito na vida outra coisa qualquer. E dançou até que, amparada, quedou-se numa cadeira posta à beira da cova. O baque surdo das primeiras porções de terra e o sorriso calmo que nunca mais lhe deixou o rosto. A dor havia lhe despedaçado o espírito, e não parava de sorrir. Nunca mais.



ao som de Mogwai, Explosions in the Sky e Deftones.