10 novembro 2006

Quem me conhece um pouco sabe de minha paixão pela obra do escritor italiano Alessandro Baricco, autor do livro que dá nome a esse blog. O conheci em 2002 e nunca mais deixei de reler seus livros. É difícil descrever o impacto de sua obra em minha vida mas me parece lícito dizer que, em certo sentido, esse livros me salvaram. Me atingiram como um tiro e essa ferida, felizmente, nunca se fechou. E é bonito pensar que há feridas que salvam. Segue um dos meus trechos favoritos, a prece do Padre Pluche, em Oceano Mar, segundo romance de Baricco. Nesse livro todo mundo faz alguma coisa estranha. Ele, Padre Pluche, reza. E o faz por escrito. Espero que gostem.

Oração para alguém que se perdeu, e portanto, a bem da verdade, oração para mim.

Senhor Bom Deus
tenha paciência
sou eu outra vez.

Então, aqui as coisas
vão bem,
quem mais, quem menos,
vamos nos arranjando,
na prática,
no fim sempre se acha um jeito,
um jeito de virar-se,
o senhor me entende,
enfim, o problema não é este.
O problema seria outro,
se tiver a paciência de ouvir
de ouvir-me
de.
O problema é este caminho
belo caminho
este caminho que corre e escorre
e socorre
mas não corre direito
como poderia
e tampouco torto
como saberia
não.
Curiosamente,
se desfaz.
Acredite
(por uma vez acredite o Senhor em mim)
se desfaz.
Tendo de resumir,
ele vai
um pouco por aqui
e um pouco por ali
tomado
de improvisa
liberdade.
Quem sabe.
Agora, sem querer apoucá-lo, mas eu teria de explicar-lhe essa coisa, que é coisa de homens, e não é coisa de Deus, de quando o caminho que se tem pela frente se desfaz, s eperde, se arregala, se eclipsa, não sei se faz idéia, mas é fácil que não faça idéia, é uma coisa de homens, em geral, perder-se. Não é coisa sua. É preciso que tenha paciência e me deixe explicar. Coisa rápida, leva um instante. Antes de mais nada não se deve deixar despistar pelo fato de que, tecnicamente falando, não se pode negar, este caminho que corre e escorre e socorre, debaixo das rodas dessa carruagem, de fato, querendo ater-se aos fatos, não se desfaz nem um pouco. Tecnicamente falando. Continua direto, sem hesitações, nem sequer uma tímida bifurcação, nada. Direto como um fuso. Posso ver por mim mesmo. Mas o problema, deixe-me dizer, não é este. Não é deste caminho, feito de terra e pó e pedras, que estamos falando. O caminho em questão é outro. E corre não fora mas dentro. Aqui dentro. Não sei se faz idéia: o meu caminho. Todos têm um, o senhor também deve saber disso, porque, aliás, não é estranho ao projeto dessa máquina que somos, todos nós, cada qual ao seu modo. Um caminho dentro, todos o têm, coisa que facilita, na maioria dos casos, a incumbência desta nossa viagem, e só raramente, complica-a. Agora é um daqueles momentos em que a complica. Querendo resumir querendo, é aquele caminho, aquele dentro, que se desfaz, bendito, não existe mais. Acontece. E não é coisa agradável.
Não. Assim agora, querendo resumir querendo, o problema é este, que tenho tantos caminhos ao redor e nenhum dentro. (...) Como vê não é que eu não tenha as idéias claras, tenho-as claríssimas, mas só até certa altura da questão. Sei perfeitamente qual é a pergunta. É a resposta que me falta. Corre, esta carruagem, e eu não sei para onde. Penso a resposta e minha mebte torna-se escuridão.
Assim
esta escuridão
eu a pego
e a ponho
em suas
mãos.
E peço-lhe
Senhor Bom Deus
que fique com ela
uma hora somente
fique com ela em suas mãos
o tanto que basta
para desmanchar-lhe o negro
para desmanchar-lhe o mal
que faz à cabeça
aquela escuridão
e aquele negro
ao coração,
quer?
O senhor poderia
mesmo somente
dobrar-se
olhá-la
sorrir dela,
abri-la
roubar-lhe
uma luze
e deixá-la cair
que afinal
de encontrá-la
trato eu depois
de ver
onde está.
Uma coisinha de nada
para o senhor
tão grande
para mim.
Está me ouvindo
Senhor Bom Deus?
Não é pedir muito
pedir-lhe se.
Não é ofensa esperar que o senhor.
Não é tolo
iludir-se que.
E afinal é só uma oração,
que é um modo de escrever
o perfume da espera.
Escreva o senhor,
onde quiser,
o caminho
que eu perdi.
Basta um sinal,
um quê,
um arranhão
leve
no vidro
desses olhos
que olham
sem ver,
eu o verei.
Escreva
no mundo
uma só palavra
escrita para mim
a
lerei.
Renteie
um instante
deste silêncio
eu ouvirei.
Não tenha medo,
eu não tenho.

E que resvale distante
esta oração
com a força das palavras
para além da gaiola do mundo
até sabe-se lá onde.
Amém.

03 novembro 2006

a calma das terras devastadas

Não seria eu quem a condenaria a uma vida que não sabia mais como viver. Não é coisa que se explique facilmente, mas o fato é que havia perdido o fio da meada. Não era força de vontade o que lhe faltava. Na verdade, o vigor lhe permanecia intacto, os olhos vivos e brilhantes. Apenas se moviam menos. Permaneciam longos instantes absolutamente estáticos. Alguma coisa ali havia se partido em tantos pedaços que não Deus poderia contar. Sabia o que tinha de fazer e o faria. E sabia que eu não a impediria, por isso nunca falou a respeito. Seguiu sua vida como se naquela engrenagem outrora tão sincronizada não houvesse peça alguma fora do lugar. Mas eu sabia que estava dando um passo depois do outro, e pra onde. É de impressionar que se leve tanto tempo para se meter uma bala no ouvido, coisa que se faz em um segundo. Ela levou anos e no último instante, tenho certeza, seus olhos ainda brilhavam, estáticos.

Na última noite sentou na cama e na forma como a descobriu eu soube que faríamos amor, e que seria a última vez. Estava calma e desprovida do fardo de aliviar-me da culpa que, ela bem sabia, eu carregaria por todos os anos adiante. E não era injusta essa sua calma. Eu não soube salvá-la, e ninguém no mundo saberia. O fato é que sua perdição se tornou a minha, a secura de sua língua nas noites de natal se tornou o deserto da minha boca, as vozes que silenciaram em sua cabeça durante os últimos anos, fazendo com que o último instante fosse envolto no mais absoluto silêncio, violado apenas pelo estalido seco de um tiro aguardado por anos a fio, aquelas vozes eu as rejeitei e na minha cabeça passou a se ouvir, até o dia de hoje e enquanto houver dias, uma única canção. E se me perguntassem eu diria, simplesmente, que se todas as coisas que de algum modo se salvam produzissem um som, a soma desses sons seria exatamente essa música.

Da última noite o que se mantém mais vivo e ardente em mim não é tanto a lembrança do meu sexo a penetrá-la ou tampouco a fúria com que o engolia ou as lágrimas que escorreram dos seus olhos até que o sono chegasse. Era uma despedida aquilo. O que não me deixa, na verdade, é a lembrança de sua cabeça junto ao meio peito após o ritual solene da perdição dos corpos. E uma pergunta, impiedosa e ressonante, que eu não seria capaz de responder nem em mil vidas: por que não dormimos daquele modo, sua cabeça sobre meu peito e eu, olhos cravados no teto, lutando pra não perder nada daquele espetáculo, resistindo ao sono que, no entanto, chegaria balsâmico e irremediável?

Teria sido um belo despertar para uma última manhã.

E pensava nisso quando pela manhã saí para o trabalho deixando-a ainda dormindo, os cabelos banhando a testa em graça. A sensação era a de que, desde sempre, desde o mais remoto instante no qual se formaram os mais singelos e elementares anseios, desde aquele instante inefável onde se produziu, de algum modo, a primeira carência e a primeira alegria, tudo, absolutamente tudo, achava-se na exata disposição presente. A visão de seus belos olhos cerrados - escuros, escuros, olhos escuríssimos - e a certeza de que nunca mais os veria de outro modo pareciam suspender o tempo. E talvez por tê-lo assim, suspenso, sequer notei o intervalo que separou aquele estalido do silêncio lúgubre que agora começa a me envolver - ao fundo, e cada vez mais baixa, a canção que escolhi em detrimento de todas as outras. E é uma calma difícil de entender, essa, porque começa no exato instante em que a dor nos explode por dentro. Em algum lugar já se deve ter dito que os tímpanos estouram para que os ruídos do mundo não tenham tempo de chegar ao coração de forma devastadora. Assim, em sentido oposto, essa é a calma das terras devastadas, de cujo solo estéril não brota mais que uma fumaça branda, que se espalha pelo ar e pela imensidão que cresce em todas direções, vazia. Deve ser assim no mais alto céu e nos corações que cessam de bater, exaustos. No entanto, o que não me sai da cabeça, nem ao menos por um dia, é por que, por que não dormimos daquele modo. E essa dúvida será o último vestígio de vida, gravado em fogo sobre o tecido fino do meu silêncio, quando ele chegar. Mas a isso não se chamará mais dor. A isso não se chamará.


ao som de Sorglega, do Sigur Rós, claro.