outro fragmento do mesmo conto
"Decidimos morar juntos, e havia algo de ridículo nisso. Porque éramos lúcidos demais pra não nos constrangermos diante daquela nossa tentativa de ter fé no futuro. Apenas fazíamos a coisa da maneira errada. Quer dizer, que o sujeito queira ter fé no futuro é problema dele. Mas há um outro jeito de esperar o futuro que não seja exatamente confiando nele: pode-se apostar. Há uma porção sempre reservada de incredulidade numa aposta. No entanto o que fazíamos era justamente o contrário: nós que não tínhamos fé nem para acreditar que no domingo faria sol o bastante para secar a roupa de sábado, passamos a colecionar gestos, cacoetes, um monte de quinquilharias sentimentais que nos faziam agir como se acreditássemos no futuro, mesmo quando estávamos a sós. Como se fôssemos o tipo de casal apaixonado que acredita que a porra da conspiração cósmica está a seu favor, e com ela Deus, os patrões e os juros bancários. É vergonhoso dizer, mas uma vez falamos em ter filhos. E isso tudo em poucos meses. Dois ramsters fugindo da solidão. Que imagem anêmica era aquela."
Fico relendo isso e pensando nesse sujeito, o narrador. Que tipo de figura é esse cara? Tão ressentido por não conseguir ser só, e por se tornar tão vulnerável quando movido por essa incapacidade... é o que me parece. Mas não o compreendo bem. Apenas acho que não era assim tão anêmica e patética aquela imagem. Quer dizer, era, mas não gosto de ouvi-lo dizendo assim. É que os gestos de dois ramsters em fuga não são apenas anêmicos e patéticos. São humilhantes também. E desproporcionais, e perigosos, e infantis e muitas vezes cruéis. Mas também infinitamente dignos e belos. Uma bela merda e, ao mesmo tempo, um espetáculo de rara beleza. Há em mim um sorriso terno e desconfortável para isso tudo.